sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Asas de gin

À beira do precipício, no ponto mais ocidental da Europa, ela balançava entre o desejo de abrir asas e voar e o de ficar com as asas recolhidas, penando...
Deixou-se escorregar lentamente e sentou-se, esfregando as mãos na terra húmida, já escurecida pelo cair da noite de um qualquer dia de semana.
Ainda sentia o torpor do alcool a correr-lhe pelas veias, a segredar-lhe que “estava bem”, que era “capaz de tudo, de tudo... até de voar”.
Semi-cerrou os olhos. Os momentos felizes saltitavam descompassados pelo corpo e incoerentemente provocavam-lhe vontade de chorar... Mas “estava bem”. Era até “capaz de tudo”, parecia-lhe ter mais força, ser mais ela.
Acendeu um cigarro e nem deu conta como as mãos lhe gelavam. Toda ela fervia de um calor anestesiante.
Reparou na cor do céu, na falta da lua, pressagiou nelas um desfecho triste mas tanto lhe fazia. De lágrimas a escorrerem-lhe pela face, sorriu.
O vazio dançava tango com a garrafa de gin. Não percebia como se deixara abater, onde se perdera... quando se cruzara com o mundo de fantasia, muito menos porquê.
Podia simplesmente levantar-se e pular sobre o mar, talvez os segundos passassem tão depressa que nem conseguisse saborear o voo , a liberdade de ser pássaro sendo gente.
Podia saltar sobre o abismo e desejar cair bem no mar, que uma onda a levasse para onde não houvesse gin só amor...
Depois, num rasgo de lucidez, entendeu que não queria, não queria voar, pelo menos dessa maneira. Queria dar uso às asas mas não assim... Só ainda não tinha descoberto como usá-las, havia-se perdido há já algum tempo e estava muito longe, muito longe do céu...
Queria regressar e não sabia como, para onde... Também não tinha para quem. Mas queria regressar. Com asas ou sem elas.
Sóbria ou não. De preferência sóbria.
Já só conversava com o gin por não tolerar a sua ausência, pelo frio que mais do que à alma lhe embalava o corpo na falta. Sabia porque se tinha cruzado com tão alva bebida mas já não percebia porque continuava a prezar tal amizade. Por vício. Só por um vício embriagante.
Voltou a esboçar um sorriso para logo de seguida verter uma lágrima e beber mais um trago de gin.
A sensação do ardor a escorregar-lhe pela garganta, a queimar-lhe picantemente o céu da boca, era perfeita se pensasse em como depois de lhe atingir as entranhas lhe iria aconchegar a alma no único sítio seguro que conhecia. Inspirou fundo a humidade que orvalhava arbusto aqui, arbusto acolá. Como precisava de respirar!
- Só uma última vez... Uma última viagem... – Disse em voz alta que ninguém ouvia porque ninguém estava e molhou os lábios novamente.
- Hoje ainda não estou preparada para adormecer sem te ter junto a mim... Ainda te amo... Ou penso que te amo... Ou no fundo, queria amar... – A voz ecoou na paisagem tão poderosa como o sentimento que lhe cabia na garrafa.
E vertendo lágrimas sinceras de paixão, verteu o gin que ainda bailava convidativamente na botelha de vidro transparente... Observou-o a escorregar pela garganta do cabo da Roca até se fundir no mar...
Voltou as costas, acreditando que amanhã estaria confortada, que já seria capaz de viver sem ele. Sentia-se “capaz de tudo”, até disso...
Mas hoje, hoje ainda era uma viciada, uma mulher sem Norte, sem casa, sem mundo, de asas pequenas. Entrou no carro, com vontade de regressar a Lisboa...
Na segunda curva, perdeu-se, ribanceira abaixo... em direcção ao mar. A sua alma não queria mas o corpo pedia desesperadamente que fosse ter com o gin, que dissolvido no mar a esperava. Um amor assim não termina... tão facilmente.
...
Acordou na cama desfeita, nos lençóis revolvidos, a suar... Aflita. Era noite cerrada e apenas as luzes do despertador-rádio assinalando cinco horas da madrugada a sossegaram. Tinha asas recolhidas, mas eram asas. Não, nunca se perdera no gin... Nunca tivera esse vício, mas tinha outro... Ainda o amava, porque um amor assim não termina nesta vida.
Obs.: Texto de ficção escrito e ilustrado por mim

4 comentários:

Anónimo disse...

Estou a adorar reler os teus contos e principalmente as ilustrações...

Beijokas GRANDES com os votos de um EXCELENTE FIM DE SEMANA

Pandora disse...

gostei da ilustração.
bj

Sara V. disse...

Trovão querido,
Ups... Escapou-me este comentário. Desculpa! Obrigado!
Já não tem lógica desejar bom fim de semana, nem boas férias... Assim, desejo de uma excelente Vida! Hehe!

Muitos beijinhos

Sara V. disse...

Pandora,
Ai, ai, amiga... Este passou. Desculpa. Aqui vai a resposta atrasada: Muito muito obrigado!
Tu sabes como sou distraída... Nem dou conta de certos repertórios musicais, lol!

Beijinhos mil