segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Cinzento, uma vida vulgar

Ela sentou-se na mesa do café do costume.
Abriu a mala e retirou o bloco, a caneta e o maço de cigarros. Poucos segundos depois tinha a bica e a empada de galinha à sua frente. O empregado já nem precisava de perguntar o que desejava tomar, conhecia-a mecanicamente, como se também ela fizesse parte da mobília.
O tempo, esse, era confuso, parecia arrastar-se deliciosamente nostálgico mas na realidade passava a correr. Passava tão depressa que, por vezes, não lhe dava tempo de ter todos os pensamentos que lhe apetecia ter em frente a uma chávena, a um pires e a um cinzeiro.
Quando estava deprimida escrevia a todo o vapor. Quando estava feliz deixava o tempo passar enquanto procurava inspiração, começando a rabiscar algo que de seguida já parecia demasiado pequeno para a sua alma. Rabiscava, então, mais qualquer coisa que aparentava ser mais promissora, para minutos seguintes ter o mesmo fim... Lixo! E sorria. Sorria de sorriso em sorriso, acompanhando pensamentos aprazíveis.
Hoje, estava mais cinzenta. Apetecia-lhe. É quando está cinzenta que pensa com mais clareza, que reflecte na vida, nos pequenos pormenores, que saboreia o café dando real importância ao seu sabor. É quando está cinzenta que se lembra de apreciar a cor do céu e que tem vontade de ter saudades das coisas boas que viveu e que tem vontade de desejar outras iguais ou melhores.
Às vezes, sabe bem estar cinzenta. Sem masoquismos, claro. Mas tem um gosto especial, como as músicas da Gal Costa ouvidas em Domingos da década de 80. Como ler a biografia de um rei e sentir-se paixão pela História. Como ouvir que Napoleão nasceu com dentes e tinha um fetiche sexual um pouco invulgar... ouvir que Napoleão quando regressava das suas muitas viagens pedia à sua amada Josefina para não se lavar...Quando ouvia episódios destes sobre pessoas que há muito morreram mas que traçaram os destinos do mundo como agora o conhecemos, fazia uma cara de espanto, de “desagrado” e de seguida sorria... Porque, no fundo, há coisas mirabolantes que fazem soltar um sorriso inexplicável, cujo verdadeiro sentimento não se decifra. E o estar cinzenta é ter cara de estupefacta, de reprovação e sorrir... por dentro sorrir. O sorriso cinzento tem algo de requintado... Afinal, cinzento não é preto... é dúbio.
Acendeu um cigarro, lançou umas bolas de fumo para o tecto e deu um gole no café. Sabia a caramelo, era daquela qualidade com bom sabor e tinha sido bem tirado, não estava queimado.
Deve ter tido sorte em ser o primeiro café a ser servido depois de lavado o manípulo da máquina.
Lembrou-se da conversa com a Teresinha, sua amiga desde o berço.
A Teresinha aos 15 nos dizia que queria ter uma filha, casar, ter dinheiro e que ia viajar até ao Brasil. Que seria feliz.
Ela havia dito à Teresinha que queria ter dois filhos, ser actriz famosa, casar, ter uma casa com piscina e viajar até à Austrália.
Na semana passada encontrou a Teresinha, que já não via há 10 anos. A Teresinha tinha dois filhos rapazes, um marido “mais ou menos”, trabalhava numa pastelaria e nunca tinha saído de Portugal. Despediu-se dela com pressa para ir fazer massa com chouriço, que o marido gostava do “comer a horas”. Sabia que a Teresinha queria ficar na conversa com ela mais algum tempo...
Tinham tanto para dizer, para contar. A Teresinha fora durante anos a sua melhor amiga e mesmo que tivesse passado outros tantos afastada e que até já pudessem não ter muito em comum, permanecia aquele «vontade» aquele sentimento de paz que é a verdadeira amizade.
Como quem diz “já não temos muito assunto depois de uma ou duas longas conversas mas continuo a gostar de ti e podes contar sempre comigo”. E foi uma desilusão ver a Teresinha tão aflita, a despedir-se à pressa, com mil desculpas e um sorriso na cara para disfarçar o quão irritante era ter que ir cozinhar massa com chouriço para o seu marido taxista que de vez em quando pulava a cerca mas que no fim ficava sempre com ela e com os miúdos.
E ela? Ela tinha apenas um filho. Casara e divorciara-se. Não tinha uma casa com piscina, mas um bom apartamento nos subúrbios. Não era actriz famosa mas era arquitecta. Não fora à Austrália mas já conhecera bastantes países...
Onde está a vida dela e a da Teresinha? A que desejaram? Não está...
Então, pensava se valia a pena desejar, porque nem sempre o que desejamos acontece. Mas quando desejamos, nesse exacto segundo, sentimos a felicidade que imaginamos sentir se fosse verdade e não sonho.
A vida tinha sido, em certa parte, bem mais traiçoeira para a Teresinha do que para ela, mas reparou que a Teresinha ainda assim parecia mais conformada, mais feliz. Mesmo com o marido que gosta de massa com chouriço... com um emprego numa pastelaria.
A Teresinha parecia ter ficado com a cabeça vazia de tudo, de sonhos e de realidade. Parecia mover-se roboticamente . Mas movia-se... Não perdia tempo a ficar cinzenta, a fazer bolas de fumo e a pensar. Só lhe interessava limpar a casa e fazer massa com chouriço a horas!
Apagou o cigarro no cinzeiro que desta vez o empregado não se esqueceu de colocar na mesa. A Teresinha pareceu-lhe talvez mais feliz do que ela mas provocou-lhe pena... Pena porque a Teresinha se perdeu no tempo e na vida, foi fumada como um cigarro. Da Teresinha não resta nada, só um corpo. A Teresinha perdeu até a capacidade de ver o quanto se devia sentir infeliz...
Sentiu saudades da Teresinha que nem sabia estrelar um ovo mas que lia romances, que tinha sentido de humor, que se apaixonava facilmente, que tinha a mania que era muito independente e crescida. A Teresinha que aos 15 anos já comprava livros de Freud na Feira do Livro. Pois, dessa Teresinha que hoje se fosse analfabeta quase nem daria conta.
Depois, pensou na Carlota. A Carlota economista, casada com o advogado, mãe de uma Madalena, que todos os anos faz férias no estrangeiro e que até já foi à Austrália, mas que também não tem assunto a não ser a última bolsa da Vitton , as aulas de piano da criança e o desapego ao marido que atura para não baixar o nível de vida. A Carlota que não é feliz mas que finge ser e que se gaba constantemente da sua esperteza, não percebendo o quanto lhe fica mal e o quanto desperdiça a vida ao viver com um homem que já não ama, ao não ler um livro...
Onde está a sua vida? Onde está? Porque não tem casa com piscina? Porque não tem marido? A casa com piscina está longe do seu orçamento.
O marido teve mas não como queria. Para não sentir a solidão de quem está acompanhada - como a Carlota -, para não ter que deixar a conversa a meio - como a Teresinha - preferiu não ter. Até porque ainda não se sente assim tão vazia que tenha deixado de reconhecer a infelicidade ou tão fútil que prefira as malas Vitton a estar disponível para amar e ser amada.
Bebeu o resto do café e pensou como seria a sua velhice...
Quer uma casa com alpendre, um jardim verde à volta... paredes brancas, rosas e os netinhos por perto. Mas ao seu lado, sentado no mesmo degrau da soleira da porta quer um amor, um grande e terno amor, para quem sinta vontade de fazer assados e tartes de fruta. A quem sinta necessidade de tirar os óculos devagarinho e dar um beijo na testa quando está adormecido na poltrona... Um amor com uma voz bonita que lhe leia trechos do livro que anda a ler e que admire os projectos que vai desenhar sempre, mesmo que sejam para guardar num armário com vidraças e chave e para as traças comerem.
Sorriu. Estremeceu ao pensar que a velhice poderá ser diferente...
Tinha que ir buscar o filho ao judo, já não tinha tempo para pensar na velhice de Teresinha e de Carlota. Mas na velhice delas também não queria pensar... Levantou-se e disse:
- Sr. João, quanto é que devo? Quero pagar!
Texto escrito e ilustrado por mim

6 comentários:

Cláudia Marques disse...

Belo texto, Sara. Tirando os cigarros e um ou outro pormenor, revi-me em mtos aspectos na mulher de cinzento!
Pois é, onde está a vida que desejámos? Tentamos criá-la, mas às vezes é tão difícil... Mas podemos mesmo sentir felicidade e ânimo ao imaginá-la. E as velhas amigas... pois é, às vezes têm mesmo que ir a correr fazer o jantar para os maridos, ou então convidam-nos para sair pq precisam de desabafar, mas depois os "pirralhos" não deixam margem para grandes conversas... A vida às vezes pode ser dura... mas outras vezes é tão boa, é o que vale...
Bj

Carla disse...

ela...aquela que avançou e escreveu o seu destino com as suas mãos
beijos

Pandora disse...

Adorei aquela da massa com chouriço.

Sara V. disse...

Cláudia,
Obrigado!
Eu acho que todas nós temos um pouco da mulher de cinzento...E o poder do sonho dá quase uma felicidade real ainda que muito breve...
Eu identifiquei-me tanto com essa dos "pirralhos" não deixarem margem para grandes conversas! Ah, ah! Logo eu, que tenho três pestinhas!!!
Acho que o encanto da vida está precisamente nessa alternância entre o bom e o mau (ou menos bom)... Vale sempre a pena quando a alma não é pequena!

Bjs

Sara V. disse...

Carla,
É realmente um pouco assim... Deixaste-me a matutar!
Beijocas

Sara V. disse...

Pandora,
Pois eu prefiro morcelas e chouriços de Rio Maior e sem massa! Hehe!

Beijocas