terça-feira, 5 de agosto de 2008

A casa

Na encosta mais frondosa do Monte ficava a casa, ladeada por crisântemos e verdes arbustos.
Diziam-na misteriosa, assombrada até.
Mas ela continuava a viver lá e não se queixava. Amava a casa como se ama a um filho, a um homem. Com muito amor.
Em cada telha estava inscrita uma carícia, em cada pedra um sentimento...
As janelas tinham vista sobre o pensamento e a porta da rua estava voltada para a liberdade.
A sala tinha lareira para suportar o Inverno frio e isolado.
O quarto tinha cortinados brancos de linho para convidar a Primavera, o sol.
A casa guardava a sua vida, o seu amor.
Naquele modesto fogão cozinhara alimentos para o coração.
No tanque lavara as roupas sujas de inveja, de intolerância, de incompreensão.
A casa respirava, tinha pulmões verdadeiros.
Nas paredes os sonhos ganhavam contorno, cresciam maiores do que as sombras.
E na banheira, ela, entre água e pétalas de flores apanhadas na encosta, inundava-se de magia.
A casa não tinha mal algum, antes pelo contrário. Era agradável e acolhedora. Abraçava-a no choro, afagava-a no sono. Era um verdadeiro tesouro, daqueles que não se podem carregar, que são um abrigo, um esconderijo.
As pessoas tinham relutância em visitá-la e ela não se importava, não tinha interesse. Pensando bem, não gostava de quem não via a casa com bons olhos.
Aquela casa tinha uma alma enorme, a sua.
Não era um castelo, nem de longe um palácio. Era uma simples casa, onde a saudade não precisava de imperar.
A casa tinha vida, pulsava, tinha sido construída com bom granito, com carinho e muita esperança.
Ele ainda por lá andava... Continuando a amá-la, a fazer-lhe companhia... Na casa. Só naquela casa.
E ela preferia estar com ele do que com qualquer outra pessoa.
Um dia, ela apareceu grávida. E na vila não se falava de outra coisa... Como poderia a Mulher da Casa esperar um filho se não tinha marido? Se ele havia morrido?! Sim, supostamente era ele que assombrava a casa... Era o falecido um fantasma. Mas fantasmas não fazem filhos ou será que fazem?! Ainda mais fantasmas que são fantasmas há cinco anos...
Uma coisa era certa, ninguém se aproximava da casa, e ela raramente saía.
Passou quase um mês a lavar e lavar o vestido que levou quando foi à vila. As mãos gretaram-se-lhe no tanque.
- Porque não paras com isso? – Perguntou ele.
- Porque as pessoas sujaram-no, deixaram-no encardido de tanto falatório... – E as lágrimas soltaram-se-lhe.
- De que falaram? – Perguntou ele condescendente.
- De nós, de mim, de ti, da casa...
O silêncio instalou-se.
A casa sorveu-lhe os pensamentos e ela tomou uma decisão. Amanhã iria ao médico da vila, precisava de uma consulta.
Já no consultório do doutor, ansiosa por saber se a gravidez corria bem, escutou...
-Infelizmente, não está grávida, realmente grávida... Está de esperanças mas não de uma criança... De desejo...
Tinha uma gravidez psicológica, segundo o doutor. A barriga havia crescido e o peito aumentado de volume. Como seria possível?!
Voltou para casa. Já era noite escura, queimou alguma lenha na lareira e comeu sopa enquanto via as labaredas bailarem-lhe em frente aos olhos.
- Estás tão triste... – Disse ele, olhando-a com ternura.
- O doutor disse que não vamos ter um filho... que é tudo da minha cabeça. – Nesse instante, voltou-se para ele, encarando-o a sério. – Tu não existes. Não és real...
A partir desse dia, sempre que o via ignorava-o. Fingia que ele não estava ali.
Apoiava-se na casa.
Até que num domingo primaveril, nasceu finalmente o filho, sem dor nem sangue.
Deixou-o recém-nascido na casa e saiu para fazer compras à vila.
As pessoas olhavam-na com intriga. Onde estava a barriga? Já teria tido a criança, a criança filha de um fantasma? Ou filha de alguém que lhes passou despercebido? Sim, porque fantasmas não fazem filhos...
Ao regressar a casa sentiu-a diferente, mais leve mas mais triste...
Na mesa encontrou um bilhete.
Já não precisas de mim. Já não me queres... Parto e deixo-te a casa. Mas nunca duvides dos teus olhos, do que o teu coração vê
Era dele. E era um papel, algo que podia tactear, cheirar... mostrar.
A casa encolheu-se com o sofrimento da louca que não era louca, apenas uma mulher que tinha um marido muito apaixonado.
Texto e ilustração de Sara Vieira

4 comentários:

Pandora disse...

Adorei. Adoro fantasmas.... ;)
jinhos

Sara V. disse...

Eu sei, hehe!
Obrigado.

Bjs

Anónimo disse...

Já anteriormente havia comentado este delicioso texto, pelo que apenas me resta comentar a não menos extraordinária ilustração...

...enfim...

Embora como sempre suspeito, só posso mesmo dizer que isto é a minha querida amiga Rosa mai Linda do Pé Nipónico, no seu melhor, mesmo com "alliens" a atormentar-lhe a existência na calada da noite...eh...eh...eh...

Beijoquita GRANDE

J.Trovão

Sara V. disse...

Trovão Boy!
Obrigado, amigo!
Fico sempre feliz quando gostas. Tu não és um bom barómetro do que está na berra mas do que tem boa técnica... Por isso, gosto da tua opinião! Hehe!

O "Allien"... Olha não sei o que é, se é... Mas continuo "brrr"... :) :)

Beijocas, muitas, para ti