quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Um Grande Nada

Passaram pouco menos de duas décadas, dois casamentos, alguns filhos dela e dele.
Ela casou com quem amou e e ele com quem quis amar. Ambos tentaram apagar o amor que sentiram um pelo o outro, embora em certas alturas tenha sido difícil.
Um dia, daqueles em que tanto um como o outro estavam disponíveis, o destino cruzou-os na Rua do Ouro.
Os olhares tocaram-se, brilharam, as pernas tremeram e o ritmo cardíaco disparou.
Em tom de visão rápida, instantânea e quase descartável, ela viu a dor da perda, a raiva, a indiferença, o desejo que às vezes voltava mas que logo afastava e uma certa repulsa passarem-lhe diante da vista, como quando as pessoas que morrem e voltam relatam que viram as suas vidas a correr a toda a velocidade.
Ele viu apenas o rosto dela quase 20 anos mais novo e sentiu no peito o aperto do amor-ódio que até hoje nutria por ela, embora muito camuflado e recalcado.
Ela sentiu esse amor-ódio e soube que era amor.
Durante vários anos, ela pensou que ele fora o amor da sua vida, aquele que a preencheu, que a inundou... Depois, acabou por considerar que talvez não fosse, que talvez tivesse continuado a acreditar naquilo para que programou o cérebro e o coração.
Veio-lhe à memória uma conversa com o marido...
- Já reparaste que a maioria das pessoas não casa com o grande amor da sua vida? Acho que quase todas as que tenho conhecido estão casadas com alguém que amam, que pensam ou querem amar mas não com aquela pessoa que mais amaram, na verdade.
O marido sorriu, como se achasse o pensamento louco. Mas vindo dela os pensamentos loucos nem eram assim tão loucos, provocavam-lhe vontade de esboçar um sorriso, talvez pela forma como ela expressava o que pensava ou pelos pormenores aparentemente insignificantes em que reparava. Mas depois, acenou afirmativamente com a cabeça.
- É verdade! Olha, quase todas as minhas amigas e amigos, para já não falar em conhecidos, não estão casados com as paixões da sua vida... Alguns se os voltassem a encontrar até abandonariam os maridos e as mulheres... ou não, talvez ficassem, por causa dos filhos... Mas sabes o que é mesmo curioso?!
- O quê? – Perguntou ele, ainda sorridente.
- É que na maioria dos casos, as mulheres viveram o seu grande amor antes de casarem e os homens depois de casarem!
Ele soltou uma gargalhada, mas acrescentou:
- Explica lá melhor!
- Pois, as minhas amigas costumam falar de um namorado da adolescência ou da época da faculdade que as marcou... E os homens, pelo que tenho constatado, falam ou numa amante que os enfeitiçou e que se não fossem as circunstâncias da altura ainda hoje viveriam felizes com ela ou noutra qualquer mulher que surgiu na vida deles depois do primeiro casamento. Por exemplo, a maior parte dos homens que teve mais do que um casamento costuma dizer que a segunda ou a terceira mulher, por exemplo, é muito melhor...
Ele riu-se com gosto e confirmou.
- Parece que nunca é como pensamos, descobrimos isso quando crescemos... Será triste?
Ele encolheu os ombros nostalgicamente.
- Pelo que me leva a retirar uma conclusão meia doida: as mulheres descobrem o grande amor mais cedo e os homens, como em tudo na vida, mais tarde. Só mais tarde estão preparados para amar. Bem sei que parece tolice mas até é verdade, na maior parte dos casos. Assim, uma mulher de 20 devia encontrar o grande amor com um homem de 40, estariam perfeitos um para o outro! – Riram-se ambos com tal disparate, ou não.
Havia nela com o marido uma cumplicidade deliciosa. Ela pensava, falava e ele ouvia com atenção, deleitava-se com as suas palavras e ideias roubadas ao vento e às vezes acrescentava.
Tinham uma forma de estar que os apaziguava, embora ela, por vezes, gostasse que fosse ele o “pensador da pólvora”. Mas viviam bem, harmoniosamente e o amor fluia sem entraves, obstáculos e mesquinhez. Tanto na alma como no corpo.
Ainda pensou para consigo... “é como se as mulheres se deixassem marcar pelo florescer e os homens pelo amadurecer”.
Todavia, na Rua do Ouro, pareceu-lhe que para todas as regras há sempre uma excepção.
Aquele que estava à sua frente tinha sido marcado por ela antes de se casar com a mulher. Cumprimentaram-se cordialmente e decidiram ir tomar café, como se o facto de se encontrarem fosse uma festa, uma alegria intensa para dois bons amigos que há muito não se viam. Não era nada disso. Nem era algo muito prazeiroso nem muito martirizante. Este encontro fazia lembrar aquela sensação de gaguez, quando se fica gago de paixão, ansioso e a rebentar, o que por vezes é bom e outras terrivelmente stressante. Muitas sensações à mistura, muitos paladares mas os ingredientes não combinavam na perfeição.
Nitidamente, ao sentarem-se, ávidos de curiosidade de saberem da vida um do outro, ainda mantiveram as defesas. O “duelo” estava no ar... Mas não tinham a certeza de querer continuar aquele jogo de competição e orgulho que os desgastou. Por outro lado, sentiam uma vontade pulsante de se atirarem nos braços um do outro, quanto mais não fosse para se descobrirem a si próprios, aos seus sentimentos recalcados e aos que prevaleceram.
- Então, o que fazes? – Perguntou ele com um sorriso charmoso que a deixava neurótica, não percebendo se escondia gozo ou apenas desejo de seduzir.
- Tenho a minha própria empresa... e tu?
- Muito bem! Eu, gosto de um bom ordenado mas de poucas responsabilidades... pelo que ainda estou naquela firma, embora tenha sido várias vezes promovido... – Fez-se um silêncio um pouco sufocante. Sorveram-se uns golos de café na esperança de ver quem quebraria a ausência de palavras. E ele continuou...
- Ainda continuas casada com...?
-Sim! Claro! E tu, que sempre casaste com... também? Presumo...
- Sim, sim! – O ruído de chávenas e conversas de fundo instalou-se novamente. Talvez ambos se lembrassem de que estiveram quase a casar um com o outro... Mas ninguém quis tocar no assunto, saudavelmente. A conversa de aparências manteve-se, desta vez por ela...
- Tenho dois filhos, o João e a Madalena...
- Eu tenho a Eduarda e a Maria...
Ela sentiu o olhar dele pesar-lhe, morder-lhe o pescoço...as mãos rodearem-lhe as ancas. Ele sentiu-a estática, consentindo tudo com fervor mas controlando-se.
O café terminou quando ela recebeu um telefonema do marido a pedir-lhe para ir ter com ele para finalmente irem comprar a prenda de anos da filha, que celebraria o 14º aniversário daqui a dois dias.
Trocaram rapidamente os números telefónicos, como que mecanicamente, como se fosse algo natural entre amigos que tinham perdido ocasionalmente o contacto.
Passados 15 dias, ele telefonou-lhe. Marcaram encontro no Guincho, numa esplanada à beira-mar, acreditando que iriam passar uma tarde a conversar sobre o passado. Ela pensou que com este novo encontro o que tinha ficado mal resolvido iria resolver-se de vez, até porque queria beijá-lo mas achava não conseguir e também não querer. Tinha muita mágoa.
Ele sabia o que queria e não era o passado, era o presente. Um presente que fosse feito do Hoje e do Ontem. E não era homem para perder tal Agora por uma mulher e duas filhas. Não pensava que o que queria, se ela quisesse o mesmo, podia vir a interferir com o que tinha ou reabrir ainda mais as feridas que ficaram.
Quando se encontraram, sob o sol simpático de Maio, beijaram-se desesperadamente. Ele pagou a coca-cola que tinha pedido e seguiram sem perguntas para o hotel. Era inevitável. No fundo, talvez ela também soubesse que se tinha deslocado de Lisboa ao Guincho para matar as saudades, os sonhos.
Foi como sempre. Desgastante, relaxante, suado, puro fogo de arco-íris.
Ela levantou-se da cama, vestiu a camisa, abriu a janela e puxou do cigarro que há dois anos trazia na carteira...
- Ainda fumas? – Perguntou ele.
- Não. Deixei há dois anos... – Inspirou com tanta força o fumo do cigarro como se quisesse sugar a sua alma, a sua recaída... E depois expirou-o demoradamente. Evitou olhá-lo. Sabia que ele a apreciava centímetro a centímetro, que talvez estivesse a comparar as suas pernas que agora carregavam quase quatro décadas de vida com aquelas onde se perdera antes... Embora as comparações não significassem nada. Mas sentia-se incomodada, pois sabia que ele a olhava como se ela fosse dele e sempre lhe tivesse pertencido, apesar dele estar ali a entregar-se a ela, a julgar que nunca deixara de ser dela... Ela quisera-o mas não o queria. Disso tinha a certeza. E ninguém é de ninguém, por muito que se acredite ou que simplesmente se queira.
Ele levantou-se, como sempre sem pudores e preconceitos, com o corpo despido aproximou-se dela por trás para a abraçar, enquanto aproveitava para lhe sentir o cheiro do cabelo. Ninguém tinha um perfume natural tão embriagante... Só ela.
Ela fechou os olhos e deixou que ele lhe sorvesse o aroma. Nesse instante, sentiu frio... tristeza, nostalgia. Não conseguia amá-lo. As lembranças que não a deixaram esquecê-lo não eram as mesmas que lhe impediam o amor, mas ambas existiam dentro de si. E não seria capaz de se entregar, ali, outra vez a ele. Se o fizesse seria como se estivesse a violar-se a si própria.
Lentamente, soltou-se-lhe dos braços e vestiu o resto da roupa. Calçou os sapatos, sempre muda. Ele percebeu que ela ia partir de vez, que o tempo que levou a levantar as suas barreiras não se perdoa. E depois do frenesim que sentiu no coração, na alma e no sexo, estava a ser consumido pela perda, a ser tomado pelo pior luto, o luto de quem enterra quem não morreu.
Sentia a terra a cobrir-lhe os braços, as pernas, o rosto... A falta de ar, a claustrofobia de quem já só ama sozinho porque não soube amar acompanhado.
Ela era o grande amor da sua vida e fugia-lhe como terra fina por entre os dedos... Terra que ao cair no chão se mistura com outra e não se consegue perceber onde começa ou onde acaba, porque o amor dela por ele já não tinha força para formar um pequeno monte, para se distinguir, para se diferenciar. No fundo, o amor dela por ele já não era capaz de se encontrar. Tinha-se diluído em desejos pedidos em sonhos e em novos amores que foi vivendo.
As lágrimas escorreram-lhe pela cara...
- Não vás... não quero... – Articulou, sentindo-se ainda mais nu, comido por uma tamanha fragilidade.
- Nunca devia ter vindo... Desculpa. – Respondeu ela, olhando-o nos olhos, já sem mágoa ou raiva... Apenas com pena mas aliviada. Este foi provavelmente o erro que mais necessitou cometer.
Ela saiu. Conduziu até Lisboa, a uma velocidade média, com os vidros descidos, deixando o ar levar-lhe a memória. A memória que voava em direcção ao mar revolto. Estavam marés vivas, como diria seu pai, “Neptuno estava aborrecido”...
Quando chegou a casa olhou para o marido. Ele sim, era o grande amor da sua vida. Um amor que tinha rejeitado na sua plenitude até então. Ele era aquele que não a deixou amar sozinha, que sempre a acompanhou, com quem se sentia ela própria e com quem podia ser ela própria, sem necessidade de jogos, de fétiches e até de lembranças.
Sentado na cama do hotel, olhando-se no espelho do roupeiro, sem se ver, ele chorava as lágrimas de saber que a amava, porque ela era a mesma, não mudara. Ele sim, transformara-se em alguém pior, mais infeliz, perseguindo quimeras que não lhe diziam nada... Ela há muito que não o amava, embora tivesse pensado que sim, ofuscada pela imagem que tinha dele mas que não era ele.
Um grande amor, um grande nada.
Obs.: Escrito e ilustrado por mim

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