domingo, 3 de agosto de 2008

Mel

Escorria-lhes mel pelos dedos.
As mãos de ambos lançaram-se numa busca desenfreada da pele, do tacto do outro.
Os corpos, já meio despidos, estremeciam de prazer, ardiam de desejo, quebravam barreiras... como se despertassem de um sonho de fel, de uma vida de mentira.
O cabelo dele tinha a textura da necessidade... toque de seda.
Os músculos enrijecidos eram puro deleite, provocavam-lhe tamanha paixão, tal descontrole não antes saciado.
E o mel continuava a escorrer, a percorrer as costas, os bíceps , enquanto mais mel descia do pescoço e passeava até às nádegas ainda vestidas por jeans.
A boca, doce, ia explorando a doçura do êxtase que pedia com misericórdia que fizessem amor, que se aventurassem sem pudores, que vivessem.
De olhos fechados, para esquecer o mundo, o prédio, o apartamento, a sala... Com as narinas entorpecidas de perfume masculino, de odor másculo, com os lábios a ficarem dormentes, despiu a camisa... O calor já não se suportava. O mel inundava-lhe a fantasia. Ele também se sentia peganhento, mais adocicado do que nunca.
Sempre soube... sempre soube que um amor assim era feito de mel dourado. Sempre ansiou por se lambuzar mas era fiel a ela, aos filhos, aos pais, aos irmãos, ao patrão, aos colegas, aos amigos ... Era fiel mas não verdadeiro. Mas chega sempre a hora ou o alguém que nos arranca do coma, do fingimento, da dissimulação. Que nos desarma e por quem já não se consegue imaginar permanecer na sombra, na infelicidade, no segredo... Alguém que nos despe, que nos põe a nu o que somos e o que sentimos. E tinha chegado a pessoa, o mel...
Deitaram-se no tapete da sala que não conseguiam ver, já sem qualquer roupa, e com a luz do sol da tarde a entrar pela janela, apreciaram os cinco sentidos. Mergulharam na visão do amor, fundiram as línguas feitas de mel e fizeram magia.
As almas estavam iluminadas por estrelas e os corpos húmidos de liberdade.
No fim, deixaram-se ficar abraçados num tapete feito de mel. Sorvendo o aroma agri-doce do desvario...
- Não aguento mais... Não quero viver longe de ti...
- Eu também não... Sempre te quis mas tinha receio que se to contasse fugisses de mim... Preferia ter-te perto mesmo sem te ter...
- Eu sempre soube... – Disse ele, fugindo com o olhar. Não por vergonha, apenas porque os seus olhos acompanharam o seu pensamento e vaguearam pelo tecto da sala, que agora reconhecia branco.
- Sempre soube... – Retomou a conversa, ainda extasiado.
- ...que tu me querias, que eu te queria... Fingia não te querer... como sempre fingi ser o que não sou... No fundo, sabemos sempre o que somos... Lutamos contra isso por nos parecer o caminho mais certo e mais fácil...
- Tens razão... E acabamos por escolher um caminho ainda mais difícil... Mais infeliz, magoamo-nos a nós e a quem nos rodeia... Nunca devia ter casado...
- Nem eu... Gosto dela mas nunca a amei... Nunca senti isto... esta sensação que sinto quando estou contigo, esta electricidade... nunca, em 16 anos...
Abraçaram-se, entrelaçaram-se e o mel começou a entrar em ebulição, a criar bolhas de desespero. Bolhas doces mas de uma intensidade líquida impressionante. O mel voltou a dançar-lhes nas veias, no sexo... No ar pairava uma doçura floral e embriagante. Ambos entraram em transe, como se fossem capazes de se amarem vezes e vezes sem conta, para se redimirem pelas que não tinham deixado o mel libertar-se, fluir.
A adrenalina fervia, evaporava, chovia, entranhava-se-lhes nos corpos, voltava a ferver, a evaporar, a chover... Eram gotas de mel que caíam... Gotas que escorriam pelos rostos, pescoços, peitos, barrigas e que se uniam numa harmonia perfeita e fálica, completamente fálica. O mel era fálico e provocava agonia. Uma agonia boa, doce. Uma dor penetrante pela qual se enlouquece . Desta vez, ele estava pousado no seu tronco, cansado, satisfeito, ouvindo-lhe ainda as batidas aceleradas do coração...
- Quero-te tanto... Tanto que até dói...
- E eu preciso tanto de ti...
- Não consigo viver mais sem o teu mel... Vou sair de casa... Vou... Vou!
Nesse momento, ouviu-se o barulho de uma chave a rodar na fechadura da porta.
Ela chegara mais cedo, muito mais cedo do que de costume.
Tentaram vestir-se à pressa mas não tiveram tempo...
Ela parou, como que suspensa, à entrada da sala... Olhou paralisada o marido... Percebeu a traição, mas não foi capaz de articular palavra, de demonstrar dor ou raiva... A perplexidade sobrepôs-se a qualquer sentimento. Sentiu o aroma do mel acabado de extrair da colmeia... Pela primeira vez em 16 anos soube ao que cheirava o mel... E compreendeu... Voltou as costas, silenciosamente, e saiu porta fora. Queria libertá-lo. Dar-lhe liberdade a ele e a si própria. Ela também tinha direito a provar o sabor do mel... Libertava-o assim para a verdade, rumo à felicidade de ambos... Mas a imagem do marido e do homem que não conhecia não lhe saía da cabeça... E o aroma do mel toldava-lhe a emoção. Correu pela avenida como se fosse a fugir de si própria, perturbada pelo ciúme, pela inveja e pela mentira que o mel revelara... Maldito mel! Tão doce... porque escondê-lo?
Obs.: Texto de ficção escrito e ilustrado por mim

8 comentários:

Pandora disse...

Estamos numa fase muito erótica.Hum gostei do desenho.

Sara V. disse...

Hummm... Obrigado!
:) :) :)

Anónimo disse...

Pois é...pois é...se o conto já anteriormente era de uma doçura extraordinária, agora com esta excelente ilustração está simplesmente divinal...!!!...

Parabéns Mais Uma Vez...

J. Trovão

Cláudia Marques disse...

Sara, foi uma excelente ideia juntar estes seus dois talentos. A sua prosa (que às vezes é poesia), já de si tão rica, ganha ainda mais vida com as ilustrações. Gostei muito. Tb já fui dar uma espreitadela ao blog da pequena pintora, e já a mostrei - e à Bloom - à Carolina, que tb é fã das Winx, e por acaso tb adora desenhar e pintar (não saiu a mim, que nunca tive grande jeito para desenhar; lembro-me que um dos meus grandes suplícios na escola foi ter que desenhar a cara de um colega - coitado, ficou irreconhecível!). Ela herdou o talento do lado paterno.
Qto a este texto, gostei mto da imagem do mel a entrar em ebulição, e a "criar bolhas de desespero". Parabéns, mais uma vez.

meldevespas disse...

Mais sensual ainda este teu texto (que já te tinha dito A D O R E I), com este desenho tão sugestivo.
Beijinho

Sara V. disse...

J. Trovão,
Obrigado, amigo!
A ilustração é feita de mel:)

Beijoca grande

Sara V. disse...

Cláudia,
Olá! Seja bem vinda!
Ia perguntar como tinha descoberto o espaço da "pequena pintora - fá da Bloom", mas acho que já sei... Hehe!
Quanto aqui ao "Nas Tintas", a ideia foi mesmo juntar as duas paixões: escrita e desenho.
Pois, eu sempre adorei Educação Visual e com muita pena não fui para a FBAL... Mas, mais tarde, fui para um atelier, que ainda frequento e adoro.

Volte sempre, beijocas para a Cláudia e para a Carolina

Sara V. disse...

Querida Mel,
Ah ah! Transborda de sensualidade, não é?! Está tudo cobertinho por mel!!!! Hehe!
A ilustração é lápis só o mel é de aguarela...
Quero criar uma pequena imagem para os meus contos, uma espécie de apontamento apenas, pois o resto é bom que fique à imaginação do leitor. Mas confesso que gosto da junção. Além de que os textos ficam mais "arrumadinhos":) :)

Beijocas