sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A Estrela e o Cometa

A Estrela limpava a sua pequena poeira cósmica enquanto olhava pela janela a galáxia. O céu estava escuro mas muito brilhante. Arrepiou-se. Sentiu um aperto no peito. Sabia que uma noite tão iluminada só podia ser sinónimo de que o Cometa vinha a caminho. Talvez chegasse na próxima noite. Um calafrio enorme percorreu-lhe o corpo. E ficou pensativa, de vassoura na mão, encostada ao parapeito da janela. Só a voz do senhor Estrela a chamou à razão...
Já era dia, quando os dois se deitaram. O senhor Estrela adormeceu profundamente mas ela não conseguiu pregar olho. Virava-se e voltava a virar-se nos lençóis de azul índigo bordados com a prata da lua.
O Cometa aparecia de 80 em 80 anos... Nunca sabia o dia exacto em que ele completava a rotação mas sabia que estava na altura e o céu brilhou demais na noite anterior.
Vinha-lhe à memória a paixão tórrida que viveu com ele, no primeiro milénio. Como suspirou e sonhou por aquele Cometa que,com palavras manhosas e beijos de fogo, a irradiava ao ponto de por vezes parecer uma estrela cadente. Puro fogo de artifício. O Cometa vincou-lhe os raios como nem o Meteorito conseguiu fazer.
- O Meteorito não... Era bom na paixão mas rude nas conversas... Não. O Meteorito apaziguou-me a solidão mas não... nunca o amei... – Pensava para consigo. – Já o Cometa... como me feriu ao desaparecer... Bem sei que 80 anos não é muito, mas era mais do que suportava esperar sozinha... E depois, o Cometa perdia-se de estrela em estrela, à medida que percorria a galáxia... Bem sei que eu era a única estrela da sua vida mas não suportava dividi-lo com ninguém... Fiz o que estava certo...
A Estrela continuava ansiosa deitada na almofada dourada com desenhos de sol. Doía-lhe respirar. Olhava com ternura o senhor Estrela enquanto dormia... O senhor Estrela tão bom, sempre dedicado e presente. Completamente apaixonado por ela e que tanto se esforçava por lhe satisfazer todos os caprichos. O senhor Estrela com quem partilhava tudo o que tinha há mais de dois milénios. Com ele era feliz, tranquila... embora nunca tivesse sentido a necessidade de ter filhos e já tinha uma boa idade para isso. Três milénios e meio já são anos respeitosos. Sabia que o senhor Estrela queria muito ser pai, mas ela nunca o viu como pai dos seus filhos. Sempre imaginou que seria o Cometa. O Cometa que, um dia, em vez de demorar 80 anos a voltar para ela se perdeu e apenas regressou ao fim de 160. Tão fustigada se sentiu que acabou por lançar-se nos braços do senhor Estrela. Do senhor Estrela... Quando o Cometa voltou sentiu-se traído e desapareceu por mais de um milénio. Casou com uma lua de Júpiter e conheceu a paternidade... Tornou-se ainda mais libertino, ao contrário do que seria de esperar. Na realidade, mudou muito, sendo hoje incapaz de amar. Entretanto, a Constelação de Saturno, em conversa com ele, caiu no erro de lhe falar na Estrela e ele voltou a pensar nela. Tanto pensou que lhe foi difícil resistir, acabando por partir em busca dela. Apareceu-lhe, então, com ar de pavão, galhofando, tentando esconder o seu próprio fracasso. A Estrela ignorou-o. Ignorou-o uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes... Até que cedeu à sua persistência. Pelo menos, cedeu em pensamento, pecando platonicamente .
Outra noite caiu. Esta estava completamente incandescente. E o senhor Estrela decidiu partir à caça de buracos negros, como era seu hábito. Deram apenas doze badaladas, quando os amigos o vieram buscar a casa. O senhor Estrela beijou a Estrela e partiu, no foguetão, acenando com carinho e prometendo que regressaria dentro de duas ou três noites.
Desta vez, a Estrela não queria que ele fosse caçar buracos negros. Não porque tivesse medo de ficar só ou porque receasse que ele se fosse iluminar com o brilho de outra estrela qualquer, mas porque sabia que o Cometa viria... E entre o desejo que tinha dele e a repulsa que ele lhe causava, não imaginava quem ganharia a batalha.
O Cometa apareceu, espreitou-lhe pela janela aberta e anunciou a sua chegada. Mal ela se aproximou daqueles seus olhos grandes e brilhantes ele puxou-a e deu-lhe um beijo. Um beijo tão cósmico, tão Zen, que ela não conseguiu descolar os seus lábios dos dele. Sentiu a electricidade a pulsar dentro dele, a Terra parada, o céu imóvel, o Sol quedo e frio... o relógio do Universo deixar de fazer tic-tac , tic-tac ...
A boca do Cometa tinha íman, tal como as suas mãos, o bater do seu coração...
Sincronizaram-se de tal modo que a paixão se soltou em tom de Yin e Yang .
Era ano de Tigre, a entrega andava ao sabor do vento, e o amor perdido em ano de Rato e rejeitado no de Serpente floresceu.
A Estrela e o Cometa rebolaram pelo soalho de nuvem, tocando uma sinfonia freneticamente erótica. Suados, adormeceram. O sonho era agitado, doce e picante como o seu reencontro mas atormentado pela realidade ácida da separação que dentro de um par de horas teria lugar.
O Cometa acordou. Olhou-a demoradamente, apreciando-lhe a luz alva e radiosa... Ela era a Cinderela do seu lado lunar... A aurora do seu encantamento. Mas pensou nas suas filhas, luas de Júpiter, tal como a mãe... Sabia-se capaz de sacrificar a sua felicidade para as ver crescer, para manter o matrimónio sagrado... Sabia que a Estrela, com o seu bom fundo, não teria força para abandonar o senhor Estrela, que tão devoto lhe era... E por tudo isto, acariciou-a com ardor... precisava de acordá-la, a noite estava a terminar e queria amá-la o mais que pudesse.
A Estrela abriu os olhos e sorriu, mas sentia o mesmo aperto no coração, tal como aquele que lhe havia sustido a respiração na noite anterior, quando pressentiu o inevitável.
Fogosa e luxuriantemente, voltaram a perder-se nas asas do desejo, no turbilhão de uma paixão milenar que seria adiada para milénios distantes, concentrando-se no que teriam que aprender e mudar para que quando se voltassem a cruzar não desperdiçassem outra oportunidade.
Foram mais de mil os beijos, as gotas de suor, os gemidos e os sorrisos de prazer. Até que o dia amanheceu e o Cometa foi obrigado a partir...
Afastou-se devagar, com lágrimas nos olhos, olhando-a com intenção de que fosse a última vez... Se voltasse a visitar a Estrela perderia a noção da realidade, da responsabilidade... Lentamente correu em direcção a outra galáxia, pesado de culpa, de um remorso infinito de ter desistido dela tão facilmente, de se ter unido à Lua de Júpiter, de a ter deixado enlaçar-se com o senhor Estrela... Impregnado de amor, chorou.
Chorou como uma criança, mas sabendo que era já bem maduro e que os milénios não voltam... Não voltam, só avançam...
A Estrela, perdida em tanto desamor, guiada por um vazio do tamanho do Cosmos, deixou-se ficar deitada, abraçada à almofada dourada com desenhos do sol, olhando o soalho de nuvem... Cheirou-se e consolou-se com o perfume do Cometa que ainda vivia na sua pele...
Encerraram um capítulo que levara milénios. Agora, estava liberta, pois provara o desejo, saciara a dúvida e ficara com a certeza. A única certeza que era capaz de a manter viva, de a iluminar até à próxima vida. O Cometa estava-lhe destinado mas por estes milénios teria que aprender a amar o senhor Estrela.
Quando o senhor Estrela voltou da caça dos buracos negros, embora trouxesse as mãos vazias, ela sorriu-lhe e abraçou-o com sinceridade.
- Sabes, enquanto estiveste fora, pensei...pensei muito... – Disse, brilhando, sorrindo com ternura.
- Pensaste no quê?! – O senhor Estrela sorria, curioso e bem a leste do aroma de que a Estrela estava perfumada.
- Pensei que tens razão... Que quero ser mãe, para que possas ser pai... – Revelou com pouco entusiasmo mas com um amor genuíno.
O senhor Estrela ficou nos píncaros, sentiu uma felicidade imensa.
Nove séculos depois, a Estrela deu à luz um anel de Saturno. Uma criança introvertida mas profunda...
Obs.: Texto de ficção escrito e ilustrado por mim

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom!!!

cheio de imaginação, romance, separação e sempre a esperança, na espera do seu amor... E depois, ele parte ... E ela, ao fim de milénios - começa a viver!

lindo! Beijos,

Maria luísa

Sara V. disse...

Obrigado!!!!

Acho curioso reportar histórias e sentimentos humanos para outros fenómenos. Dá-lhes uma vida diferente, mais perto da "nossa". O mar, o rio, a estrela, o cometa, o sol, a lua... Todos podem interagir, hehe!

Beijinhos

Pandora disse...

De facto viajamos para o espaço e para uma recompensa de uma maor que soube esperar...

Sara V. disse...

Pandora,

Assim, esperemos...