quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O espelho da memória

Passava horas em frente ao espelho... Olhando apenas para o infinito... Não sorria nem chorava.
Deambulava solitária, confusa e perdida pelo reflexo de uma vida que estava na recta final.
Os cabelos prateados em tempos tinham sido negros da cor da noite mais escura de Inverno.
A pele enrugada já tinha sido mais macia do que a fita de cetim pérola que decorava a base do espelho...
Os seus olhos hoje baços haviam brilhado ao sabor das emoções e dos anos que para trás ficaram...
As suas mãos, essas, não as conseguia ver na imagem reflectida, não se encontravam dentro do ângulo que o espelho oval captava. Tinha-as pousadas no colo, segurando um fino lenço de senhora. Um hábito incutido desde tenra idade. “Uma menina deve trazer sempre um lencinho”... Quando se lembrasse, colocá-lo-ia na manga do casaco de malha.
As suas mãos tremelicavam... ainda bem que não as via... De qualquer modo, se as visse não as reconheceria...
O espelho de nada servia. Nele, apenas se perdia como se poderia perder em frente a uma qualquer janela ou até diante de uma simples parede branca, despida de qualquer pormenor.
Não sabia quem era. Conhecia somente quem tinha sido.
Lembrava-se que fora bebé – porque lho contaram e, pois, porque tinha inevitavelmente que ter começado assim -, menina de bibe branco que frequentara um colégio particular apenas para meninas de boa linhagem, adolescente encantada com o que a esperaria no destino, jovem mulher apaixonada por alguns rapazes do seu nível... mulher casada... triste, entediada e até ignorada...
Lembrou-se dele, do seu amor proibido, do seu amante plebeu... E uma lágrima de alegria escorreu-lhe pela face... No espelho apenas via reflectida a paixão que sentira mas que agora vivia através do reflexo da memória... Longe de tudo e de todos...
Lembrava-se de ter sido mãe. Carregara no seu ventre um filho que se perdera com a ingratidão do vento... da solidão...
Também se lembrou de como foi, na maior parte da sua vida, uma mulher só... Da viuvez a uma idade respeitosa mas sem ser demasiada. Do marido que pensara aprender a amá-la mas que nunca a amou... Não deu graças a Deus pelos casamentos já não serem contratos hoje em dia, não tinha lucidez para tanto, se tivesse daria.
O seu hoje era sempre o seu ontem. Às vezes, um ontem feliz, outras um ontem triste e nostálgico.
Esforçou-se por se lembrar do seu amor proibido... Ele fazia parte das únicas memórias aprazíveis... Tinha a vaga ideia de que era um homem ligado à arte, pobre, sem nome mas com cultura... sensível... iluminado por Deus, embora não pelos homens... Solteiro, talvez... Não se lembrava que ele tivesse algum impedimento... Só ela não o podia amar a ele... Sim, era o que lhe estava gravado no álbum das recordações.
Tardes mornas à beira-mar... trocas de mãos por baixo da mesa de alguns salões de chá... mas o que mais via reflectido no espelho era o sorriso dele, o sorriso terno dele... O melhor sorriso da sua memória, sem dúvida. Quis encontrá-lo depois da viuvez e não conseguiu... Era viúva há quase quinze anos, o marido falecera dois dias depois dela festejar sessenta primaveras... Porque não se lembrava de mais nada?
Continuava intrigada a olhar para o infinito reflexo do espelho...sem visualizar as mãos trémulas, o cabelo prateado, a pele ainda macia mas enrugada... Onde estariam os últimos quinze anos da sua vida? Onde?
O espelho mantinha-se mudo e cego... Parecia um infinito mar azul... um horizonte.
E ela perguntava-se pelo que estaria mais além... para lá do reflexo... Depois dos sessenta anos...
Teria que voltar atrás? Teria que resumir a sua memória a seis décadas?
E continuava a procurar pelo amor proibido... pelo seu amor...
Mas o espelho já nada refectia. Apenas a solidão de quem está só e presa na memória... obrigada a uma clausura.
- Hoje, fazes anos, meu amor... setenta e cinco... – Disse uma voz de homem também já apagada pela idade.
Ela voltou-se, ouviu um som... um som distorcido... não sabia se seria para ela...
- Preparei-te um jantar especial... Fiz aquele souflê que tanto gostas... – A voz do homem era apagada mas trémula de amor. E ele segurava uma bandeja com dois pratos, dois copos, talheres e um pequena jarra com uma rosa vermelha.
Ela olhou para ele, com o olhar perdido do costume... Não sabia quem ele era, embora parecesse simpático. Mas não lhe apetecia jantar. Voltou-se novamente para o espelho, queria encontrar quem tanto amou...
- Amor, sou eu... o teu amor.... – Disse ele com o coração apertado de tristeza mas ainda a sufocar de amor...
Agora que poderiam viver um amor não proibido, que poderiam estar juntos de alma e corpo... continuavam a encontrar-se só em pensamentos e desejos... em lembranças passadas... nas que o espelho ainda reflectia.
Se antes o amor que sentiam um pelo outro era castrado pelo marido dela, por toda a sociedade... agora continuava a ser oprimido. Censurado pela Alzheimer.
Obs.: Escrito e ilustrado por mim

4 comentários:

olga maria disse...

Sara, bom ver tantos textos novos depois de um longo tempo! Este do espelho me faz te contar algo íntimo: minha mãe, que completou 95 em janeiro último, quando a levo ao espelho para penteá-la me mostra sua imagem e diz, assim meio que com estranhamento: "Não sei quem é! Está todo dia aqui!"
beijo Olga

Solange Maia disse...

Gostei do seu blog.
Textos fortes, reais, mexem com a gente... provocam emoções...
Parabéns !
Quando der visite meu blog também :

http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

Beijo !
Solange Maia

Sara V. disse...

Olga,
obrigado! Obrigado pela presença e pela partilha. Sua mãe tem uma idade muito bonita... Acho de verdade. Também vou partilhar, tenho madrinha com 87... E apesar das falhas de memória não serem alzheimer, nem tão profundas, sei que provocam sentimentos complexos... Mas é bonito estar vivo e ainda andar por aí... ainda chegar ao espelho, à janela, à rua...

Beijo terno

Sara V. disse...

Solange,
Fico agradecida pelas gentis palavras.
Gostei do que disse porque quando escrevo, escrevo ao sabor da vontade do momento mas pensando/aspirando que tenha sentimento, que seja humano, algo com que nos identifiquemos ou reconheçamos, embora descrito com beleza. Porque em todos os momentos bons e maus há sempre algo de forte e de belo... Depende de como os analisamos e o melhor é não fazer julgamentos e apenas tentar entender...
Fica aqui a promessa de que assim que tenha um pouco de calma vou visitar seu blog.
E volte, é sempre bem vinda.

Abraço