domingo, 24 de agosto de 2008

Chocolate chocolate

A sua bisavó conhecera o seu bisavô em Espanha quando perto da Raia, para os lados de Salamanca, experimentara pela primeira vez uma chávena de chocolate quente, devidamente acompanhado de um pratinho de churros, pois claro. Foi numas férias de Páscoa, que o seu trisavô, reputado juiz , decidira fazer. Parece que o chocolate era delicioso e lhe toldou os sentimentos pelo jovem sentado na mesa ao lado. De regresso ao Porto, a menina que seria anos mais tarde mãe da sua avó materna, trouxe na boca o sabor de tão estimulante bebida e na bagagem o endereço do apaixonado. O namoro foi sério e três anos depois, a bisavó, com apenas 22 anos casou com o raiano , que se juntou na Invicta a ela e ao reputado sogro juiz .
A sua avó recebera como primeiro agrado do rapaz que a cortejava - e que um dia seria seu avô - uma caixa dos mais finos bombons belgas. Rendeu-se ao praliné e ao rapaz. Dois anos depois casava na Sé. Contam alguns familiares que, enquanto foi vivo, seu avô sempre ofereceu à senhora sua avó uma caixa dos ditosos bombons como prenda de aniversário de casamento. Ora, sua avó, recebera, pelo menos, quarenta e seis caixinhas de tal gulodice vinda da Bélgica.
A sua mãe ainda hoje sorri quando lhe conta como ela e o pai a conceberam em plena lua de mel, num modesto cruzeiro pelo Norte da Europa, em lençóis suados de amor e lambuzados de tabletes de chocolate suíço. Ela fora fruto da paixão e do chocolate. Aliás, toda a linhagem feminina da sua família parecia ser marcada pelo seu doce e afrodisíaco sabor.
O chocolate ditara os amores destas mulheres, como se fosse a mão do destino.
Ela casara com um homem que nunca lhe oferecera um bombom, um quadradinho de tablete de chocolate ou qualquer outra delícia proveniente dos graus de cacau. Jamais comeram tal iguaria em simultâneo. Nunca pensara muito no assunto. Mas agora que o casamento ultrapassava uma fase complicada, tal pensamento ocorreu-lhe. Não seria suposto o amor andar sempre de mãos dadas com o chocolate?!
Talvez pela falta do toque do chocolate, ela tenha casado com um homem menos romântico, tenha tido uma relação menos apaixonada, não tenha experimentado grande erotismo e ainda não tenha conseguido gerar um filho. Isto, além de ter sido a primeira da família a trocar a cidade do Porto pela de Lisboa ou por outra qualquer. No caso da bisavó, até o avô de Salamanca viera para as margens do Douro... Seguindo o hálito achocolatado da bisavó...
Ela, que não tivera um amor com chocolate, não conseguira manter o marido perto da Torre dos Clérigos, da Rua de Santa Catarina, do Café Majestic ...
Era Inverno e ela, sentada, numa esplanada qualquer de Cascais, fumava um cigarro enquanto esperava por uma chávena de chocolate quente.
Folheava uma revista mas pensava como era aborrecida a sua vida, tão monótona, cinzenta...
Como era cansativo que o marido trabalhasse tantas horas por dia e ainda aos sábados... Como tinha saudades da Foz portuense, daquele céu azul pesado, dos barcos que passeiam até à Régua... Como preferia estar na Ribeira, olhando ao longe as caves do vinho do Porto...
Um homem moreno, mais jovem e bem parecido, senta-se na mesa ao lado e pede uma chávena de chocolate quente. Despertou-lhe a atenção... Inadvertidamente, entre a sina familiar, o karma do chocolate, o sonho e a nostalgia, deixa-se ficar com um olhar preguiçoso sobre ele. Não o via a ele, mas à graça de ver um estranho beber chocolate... O chocolate cor da terra molhada, com textura aveludada e cheiro inconfundível... O homem sorriu-lhe. Sorriso que a enterneceu e que retribuiu.
Trocaram algumas palavras sobre chocolate e não sabe como, acorda dois meses depois, na casa dele. Numa casinha de Hansel e Gretel ... Onde um boião de vidro contém milhares de pintarolas coloridas de chocolate, onde o homem de roupão bebe leite com chocolate todas as manhãs... E onde a cama e o sofá de pele castanha, em que os aromas dos corpos de ambos se dissolvem, libertam cheiro a chocolate.
No chão, jaz uma caixa vazia de bombons que sorveram sofregamente na noite anterior enquanto viam o filme.
Ele beija-a sempre cedinho, pela manhã, e o seu hálito é adocicado, aromatizado a chocolate. Um dia, enquanto estão abraçados, ele comenta divertidamente...
- Nunca conheci ninguém que gostasse tanto de chocolate como eu! Sou completamente viciado! Ela relata-lhe a relação das mulheres da família com o chocolate e como esse influenciou as suas vidas e sempre foi condimento presente nos momentos marcantes... Ele ficou fascinado. Melhor do que chocolate, só ela!
Ela, 10 anos mais velha e casada com um homem com que não tinha futuro, nem chocolate.
Uns meses mais tarde, ela recebeu a carta registada que marcava o início do processo de divórcio enquanto lia o livro “Como água para chocolate”.
Passado mais algum tempo, decidiram fazer uma viagem. Escolheram os Alpes Suíços e deleitaram-se com amor e chocolate.
Comiam fondues de frutas embebidas em chocolate ao mesmo tempo que se amavam no quarto do pequeno chalet .
Lá fora a neve caía gélida e branquinha, em flocos... Os turistas faziam ski pela montanha abaixo.
Enquanto isso, as vidraças das suas janelas embaciavam-se com o calor das labaredas da lareira e da paixão que escorria achocolatada por entre dedos, cabelos e bombons... O cheiro do chocolate era de uma preciosidade erótica que os fazia amarem-se repetidamente, lambuzarem-se um no outro, trocarem línguas que salivavam desejo e chocolate. Os corações já não eram vermelhos mas sim castanhos. O pecado era castanho. A inocência também.
Uma noite, ele cobriu-a de pequenos quadradinhos de chocolate negro e não descansou enquanto não os foi derretendo na sua boca... De vez em quando, entre carícias que arrepiam a pele, dava-lhe beijos molhados, em que o quadradinho de chocolate empurrado por uma língua era recebido com excitação por outra língua...
Numa outra tarde, ele decidiu derreter uma tablete de chocolate em banho maria , esperou que amornasse e mexendo bem com uma espátula de madeira para obter um creme homogéneo, verteu-o sobre ela, que estava deitada na mesa de madeira rústica em frente à lareira. O calor morno do creme achocolatado percorreu-lhe as veias, impregnou-se na linfa , ateando-lhe uma vontade desesperada de que ele lhe sorvesse a alma e o chocolate para que por fim ela o sorvesse a ele embriagado de tal sabor. Foi nessa tarde que tanto amor e chocolate floresceram e amadureceram. Conceberam a filha...
Uma filha que ainda não sabe mas que também tem o seu destino marcado a chocolate. Um gelado de chocolate é delicioso nos sofás do Majestic ...
Escrito e ilustrado por mim

4 comentários:

Anónimo disse...

Sarav.

Espantoso o que escreve! Lindo, de ficar sem palavras para dizer.

Hoje é um dia de esplendor.
Me encanta a sua forma de dizer.
A maneira como apresenta e como desenvolve o tema.

É muito diferente do que tenho encontrado; e eu a pensar que sabia escrever ...e só eu ... mas não há desilusão - apenas Encanto.
Bem Haja!

Maria Luísa

os7degraus ; prosa-poetica (sapo)

Sara V. disse...

M. Luísa,
Que simpatia!
Fiquei muito contente com os seus elogios, vindos de si...
Diferente é. Tento mesmo que seja. Que tenha o tal "cunho pessoal". E é um desafio pegar até em temáticas "banais" ou situações que muitos descrevem com numa certa rudeza e dar-lhes um toque doce, neste caso mais achocolatado... Hehe!
Espero que o Encanto permaneça:)

Abraço

Pandora disse...

Até deu para sentir um cheirinho a chocolate quente...Adorei a ilustração

Quanto ao resto "chocólatra" lol

Sara V. disse...

Pandora,
Dá, não dá?! Humm... que gulodice! Hehe!
Obrigado.

Bjs