Dizia a sua avó que uma pessoa se vê pelas mãos, pelos pés e pelos cabelos.
As mãos devem estar limpas e com unhas bem tratadas.
Os sapatos devem estar limpos e engraxados.
Os cabelos devem estar limpos e penteados.
As roupas, pobres ou ricas, não interessam.
Uma pessoa tem que ter brio. Uma pessoa vê-se pelas mãos, pelos pés e pelos cabelos.
Ainda na puberdade, ela meditava sobre tal afirmação que lhe parecia oca , vazia...
Ora, quando tinha o cabelo ligeiramente fora do lugar, diziam-lhe que ficava mais sensual. Nas mãos ninguém reparara, a não ser que eram pequenas. E nos pés, apenas costumavam fazer juízos de valor quanto ao estilo do sapato, da bota ou do ténis...
Que raio de ideia mais louca tinha a avó. Só se fosse no tempo dela. Sim, só se fosse. Porque agora o que contava era a beleza, o que valia era a inteligência, ou ao contrário. E a roupa, sim, fazia toda a diferença. E não fazia alguma.
As pessoas não deviam valer por mãos, pés e cabelos e sim por braços, pernas, rabos e corações.
Deviam valer e equivaler a sonhos, a valores de outras proveniências.
Quando cresceu, olhou para as mãos.
As mãos continuavam pequenas e não eram graciosas, eram um pouco sapudas. Sapudas, não grossas. Mas eram mãos decentes. Tinha as unhas limpas, com ou sem verniz. Não tinham calos, nem falhas. Não eram ásperas...
Quando cresceu olhou para os pés.
Os pés descalços eram bonitos, mais bonitos do que muitos. Igualmente pequenos mas a pequenez fazia-los graciosos. Calçados eram vulgares.
Quando cresceu, olhou para os cabelos.
Os cabelos eram lisos, sedosos, finos mas bonitos, de uma tonalidade brilhante e pouco convencional.
Mas a afirmação continuou a parecer-lhe sem cabimento.
Mais tarde, descobriu que as pessoas têm a vida escrita, descriminada, inscrita na palma da mão. Que as palmas da mão contêm linhas e que essas escondem segredos, decifram futuros. E ninguém tem os mesmos traços, os mesmos registos. Nem as mesmas impressões digitais.
Descobriu que as suas mãos guardavam a sua longevidade, a sua saúde, a sua personalidade, a sua sorte, o seu destino.
Descobriu que as suas mãos continham o número de filhos, de casamentos, de viagens.
Descobriu que as suas mãos eram um mapa de relações, profissões, dinheiro e de vida.
Mais tarde, soube que os seus pés eram realmente bonitos e pequenos e que calcando aqui e acolá poderia, pelo meio da reflexologia , levar bem estar aos outros órgãos do seu corpo. Pés são pés, não são sapatos...
Mais tarde, verificou que o seu cabelo permanecia brilhante e fino, apesar da cor se ter alterado como um livro que vai amarelecendo com o passar do tempo dos dias, dos anos.
Sonhar com mãos, com pés ou cabelos tinha o seu significado próprio.
Pensando melhor, talvez a avó não estivesse totalmente errada, apenas não estaria certa nos motivos.
Curiosamente, era nas mãos, nos pés e no cabelo que sentia maior sensibilidade.
Tinha umas mãos únicas, com impressões digitais e linhas disto e daquilo personalizadas. Foi com as mãos que fez a primeira festa; foi com as mãos, passeando pelo corpo, enquanto o beijava, que o passou a conhecer, cada curva, cada músculo. Foi pelo desejo que as suas mãos receberam que se apaixonou.
Ainda depois, percebeu que era especial.
Sempre acreditara que todas as pessoas eram abençoadas mas reparou que nem todas evidenciavam dons. Nas suas mãos ela tinha dons. Dons que lhe deram emprego, que lhe proporcionaram remuneração. Com as suas mãos ela poderia pagar contas, matar a fome.
E havia o “Eduardo, Mãos de Tesoura”. “Mãos de Tesoura”, que expressão bonita. Conheceu várias pessoas, não Eduardo de nome, que tinham mãos assim, cortantes... Mãos de tesoura, capazes de destruir tudo em que pegassem.
Sentada na mesa de um café, ouviu uma mãe zangada dizer para a filha pequena: “Tens as mãos rotas?!”. A criança deixara cair o queque no chão. As mãos não se rompem. A culpa não era das pobres mãos...
O vizinho da frente era casado e tinha uma amante a quem tudo oferecia, não era segredo algum. Era o “Mãos Largas”, tão largas que uma mulher não lhe chegava e gastava tudo o que tinha e o que não tinha com mais uma... Mas não era nas mãos que estava a sua largueza, essa estava no seu coração. Um coração dilatado. As pessoas têm “telhados de vidro”. As casas nem por isso.
Mas, no fundo, as pessoas também não têm telhados. Têm mãos, pés, cabelos... E as mãos são transparentes como o vidro, para quem as souber ler. As mãos lêem-se, mesmo sem letras.
Quando fizeram seis meses de namoro ele ofereceu-lhe uma aliança. Assim, ostentaria na mão o facto de namorar com ele, de ser comprometida, de se lhe ter prometido. A aliança era de ouro, fina, ligeiramente trabalhada. Quem soubesse ler-lhe as mãos leria: “Ela está apaixonada por ele. Acredita no amor e numa cabana. Nutre uma paixão verdadeira, que lhe trará algum sofrimento (pelos relevos dos trabalhos gravados no ouro) e no fim ficará vazia (a aliança é demasiado fina, poderá quebrar-se facilmente)".
Mas ela não sabia ler mãos. Não substituiu a aliança de namoro por um anel de noivado, decidiu enfeitar a mão com uma anilha dourada de casamento.
Mas a sua mão já havia registado todos os indícios com a primeira aliança. Quando as primeiras lágrimas escorreram pela face foram as mãos quem primeiro as secou. Gotas salgadas de tristezas entranharam-se nas milhares de células epiteliais das mãos, até serem absorvidas, até evaporarem. Até cairem no esquecimento. Só as mãos se lembravam de as ter secado...
As mãos têm memória do que temos, do que somos.
Às mãos, ninguém as apaga. E a memória das mãos levou-a a lembrar-se daquela vez em que frequentava a escola primária e a professora lhe deu uma reguada... Pobres mãos, castigadas pela falta de cabeça.
Pensou nos ladrões a quem ainda cortam as mãos como justa punição... Mãos que não têm culpa da falta de juízo, da necessidade ou da mente gananciosa de quem as possui.
Seguiu-se a gravidez do primeiro filho e os primeiros contactos que com ele manteve foram as festas com que acariciava o ventre... Outra vez, as mãos. As suas mãos quentes a amarem o filho que ainda não nascera... Quando o menino nasceu, foi com as suas mãos que ela o pegou, enternecida, que o aconchegou. Soube-lhe tão bem... E com as mãos lhe deu a primeira palmada, quando ele já tinha uns quatro anos e a enfureceu com tanto disparate e tão pouca obediência. Como as mãos lhe doeram...
As mãos foram ficando mais esguias e menos macias... Eram os anos a passar por elas. Nem o tempo perdoa às mãos... Se é que precisam de perdão... Provavelmente, o tempo apenas flui, tal como as mãos que tocam piano... Com os dedos vão saltando sobre as teclas. O tempo salta sobre os dedos, sobre as articulações, sobre a pele...
O filho entrara na puberdade quando começou a sentir a ausência das mãos do marido... As mãos dele já não procuravam as dela, já não se queriam perder por entre a sua camisa de noite. E as noites ficaram frias, apenas aquecidas pelas suas mãos.
O vento do Outono afogueou-lhe as mãos... As mãos que às vezes esquecia... Que não protegia.
Com o Inverno, as mãos abriram pequenas gretas. Precisava de cuidar delas, porque a avó dizia que uma pessoa se conhece pelas mãos.
Ora se uma pessoa se conhece pelas mãos, será que faria sentido tratá-las? Ela sentia-se triste, doente, envelhecida. Se as mãos são um reflexo da pessoa... Isso, as mãos são um espelho da alma... Tinha que as suavizar, que lhes fechar as feridas. Uma pessoa não é a tristeza que possa sentir mas sim a força que demonstre para procurar a felicidade, a beleza.
As mãos restauram-se, tal como os corações. Com muito creme... É verdade que as suas mãos voltaram a ficar macias, a sua pele ganhou luminosidade... Só o tempo não mentia...
Foi com as mãos no colo que sentada ouviu as explicações dele quando não regressou a casa para dormir. As mãos dele eram como o tempo, não mentiam. Enquanto o rol de explicações, de palavreado ecoava, as mãos dele diziam o contrário, nervosas, cheias de tiques. As mãos dela apertavam-se uma contra a outra, procurando apoio, para não se deixarem esmagar pela pressão. Ela levantou-se e comunicou-lhe que queria separar-se. Agora, eram as mãos dela que atraiçoavam as palavras que a boca proferia, as ordens que o cérebro dava. Ela parou, em silêncio, e olhou para as mãos, como se quisesse fugir da sala e só nas mãos se pudesse esconder.
Nesse momento, percebeu que as suas mãos estavam encolhidas, a reprimirem as lágrimas que queria soltar, porque as mãos são o instrumento do coração...
Mãos de tesoura, mãos rotas, mãos largas, mãos...
Quando pousou a aliança no guarda-jóias notou que esta lhe ficara desenhada na mão... Uma circular branca sobressaia na pele dourada pelo sol... A sua mão ostentava agora uma aliança fantasma... Um amor perdido, fracassado, destruído. Um amor do passado.
Só na Primavera seguinte, quando as suas mãos aqueceram, descobriu novamente a alegria de ser capaz de amar. E com as mãos, mais sensatas, mais sábias, com as mãos como ela, conheceu outras mãos. Umas mãos fortes, robustas, de quem trabalha e não mente...
Quanto aos pés e ao cabelo, continua a achar que o que a avó dizia não faz sentido, não tem lógica... Mas as mãos, as mãos são uma prova de ser, uma prova de vida. Sejam mãos tristes, mãos doentes, mãos alegres, mãos de tesoura, mãos rotas, mãos largas, mãos...
Na mão esquerda somos o que desejaram, na mão direita somos o que conseguimos.
Quatro mãos se entrelaçaram...
Texto de ficção escrito e ilustrado por Sara Vieira
3 comentários:
Já de te disse mas volta a dizer adoro mãos...jinhos
Também...
:)
Jocas
As mãos espelham o carácter de cada pessoa.
Eu também adoro mãos...
E adorei este texto, muito introspectivo.
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