Sentada nos degraus da sua humilde casa, Dona Joana olhava com os olhos pesados de amor e saudade as pessoas que passavam na rua, sorridentes, irritadas, nostálgicas, compenetradas e angustiadas. Olhava-as mas não as via, a tristeza trouxera-lhe cataratas e a vida miopia.
Envolta na sua camisola e saia negras, com sapatos de rede pretos calçados, esfregava as mãos uma na outra, tentando em vão aquecer o sangue que a custos o seu coração bombeava. Perdida na espera da filha e do neto que há meses não apareciam, cumprimentou a vizinha, que passou de soslaio...
- Oh, meu amor, estou tão triste... – Disse embevecidamente para o marido que chegara e se sentara junto a ela nos degraus da casa de ambos.
- Então, porquê, minha Joana? Não estou aqui, para te fazer companhia? – Ele sorriu, reforçando as rugas de muitos anos de traineira.
- Estás... Agora... Mas passas tanto tempo no mar...Eu fico tão sózinha... – Respondeu ela, coçando o olho que lhe começava a arder pelo esforço que fazia em querer mantê-lo aberto.
- Sempre assim foi, minha Joana... É preciso trabalhar... Sabes disso, tal como sabes que a melhor parte do dia é quando regresso para ti, para a nossa casa, para os nossos filhos...- Ele fez-lhe uma festa no cabelo já embranquecido por tanto sofrimento absorvido.
- Eu sei... Também é essa a melhor parte do meu dia, quando tu regressas para mim... – Ficou repentinamente silenciosa, mais entristecida ainda.
- O que foi, agora, minha Joana? – Perguntou o idoso.
- Como é que, ao fim de tantos anos, ainda dizes que voltas para mim e para os nossos filhos?! Só temos a Céu... O Quim perdeu-se há muito neste mar que por vezes consegue ser tão cruel... – Respondeu Dona Joana, quase melindrada pela insensibilidade do marido e mais perturbada pela sua possível demência.
- Para mim, o Quim está sempre presente... Não sei como não o está para ti também... Ainda ontem o vi...
Dona Joana, levou as mãos à cara, com vontade de chorar. Apetecia-lhe esbofetear o marido por obrigá-la a recordar o filho que tantas dores lhe dera no parto, que mesmo assim amou incondicionalmente e que Deus lhe levou na força da vida, sem esperar se quer que lhe desse netos.
Inspirou profundamente a brisa do mar de Setúbal, ameaçada há muita pela poluição, e acalmou-se.
- Porque não me dás um beijo há tanto tempo? – Perguntou, embora não tenha esperado pela resposta, porque continuou... – Tenho tantas saudades dos teus beijos, meu velho Lobo do Mar... Tantas, tantas!
- Oh, minha Joana... Beijo-te todas as noites enquanto estás adormecida... Continuas linda como quando nos casámos... há cinquenta anos... Linda.
- Mas porque não me beijas quando estou acordada?! É que eu também te queria beijar! Sinto-me tão só, a Céu nunca me vem ver... O nosso neto está tão bonito, tão crescido, já vai este ano para o liceu... – Confessou, com a voz tremida, Dona Joana.
- Assim, deixas-me angustiado, mulher... Tenho que ter uma conversa com a Céu... Como é que ela pode abandonar-te assim, abandonar a mãe que a pôs neste mundo e que sempre fez tudo por ela?! – Proferiu estas palavras já um pouco alterado.
- Deixa, deixa... ela lá deve ter as razões dela, lá anda ocupada na vida dela... Com o menino a estudar... Fico feliz por saber que o neto não vai para o mar... Que o mar não o vai poder caçar como fez com o nosso Quim... – Dona Joana, de olhos húmidos, sorriu para o marido, como se desse graças por um futuro mais tranquilo.
- Oh, minha doce Joana! Como és generosa, devia ter-te tratado melhor...
- Tu sempre foste um bom companheiro. Gosto tanto de ti que rezo todos os dias a Deus por ter tido a sorte de te encontrar! Só não percebo porque tens que trabalhar tanto, com esta idade... Temos as nossas reformas, magrinhas é certo, mas lá vão dando para o essencial... O que eu queria mesmo era estar sempre contigo... Junto a ti...
As vizinhas da casa do lado pararam em frente a Dona Joana e numa voz de doçura e compaixão, enquanto abanavam a cabeça, disseram-lhe: - Então, senhora, outra vez a falar com o falecido? Venha, que vamos levá-la para dentro de casa... Ainda se a filha a viesse visitar mais vezes...
Obs.: Escrito e ilustrado por mim
10 comentários:
Ola Sara.
Por Coincidencia, ao comentar um post na "meldevespas" encontrei-te aqui por um comentário lá, na mel,:). Acho muito interessante juntares o que escreves ao que pintas. Podias ter dito né? :) Beijão
Muito belo!
A saudade de um amor verdadeiro não morre nunca!
Beijão!
Jorge,
Hehe! Finalmente, rapaz... Estava a ver que nunca mais cá chegavas!
Pois, na verdade, não disse directamente mas deixei indícios!!!!! Ora, vê lá o meu comentário no teu poema "Em Linha Recta", clica lá em cima de Sara!
Bom, agora podes linkar-me, hihi!
Beijão
Jorge,
Um amor verdadeiro e uma solidão imensa...
Beijão
P.S. - Adorei a visita:)
Já em tempos disse o que pensava deste texto simplesmente magnifico, que embora tão trite é sem qualquer margem de dúvida a realidade de quem tudo deu de si enquanto jovem e que agora é ignorado escandalosamente.
Também já antes expressei o que penso da imagem em questão.
Por isso neste momento, apenas te posso FELICITAR mais uma vez por ambos os trabalhos.
Beijokitas GRANDES
Jorge
Trovãozinho,
Este é o meu último coment... Tenho as malas na mão para ir... salvo seja, claro, hihi!
Mas não quis esperar uma semana para responder, tendo em conta a simpatia que és... És mesmo queridooooo!!!! E um bom amigo:)
Beijocas, Trovão Lindo, até ao meu regresso...
SaraV
Quanta saudade provoca este texto, tão cheio de amor, de recordações passadas e tristes.
Por isso eu digo, aproveitemos o presente - mal estamos quando só o Passado nos visita "Vestido de Presente".
Beijos,
Maria Luísa
os7degraus; prosa-poetica (sapo)
Maria Luísa,
Tanta tristeza, nostagia, saudade e até uma certa candura... Tanta vida passada, a passar e ainda alguma por vir... Tanta verdade, tanta realidade (para alguns, mais do que gostaria)...
Beijinho
Já conhecia o texto..gostei da ilustrração sabesq ue sou tua fã;)
Pandora,
Ah, ah! Fiz um enorme sorriso! És uma querida! E, tu, também sabes que sou tua fã... Espero:)
Jocas
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