sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Olhos de laranja

Tinha laranjas nos olhos. Não tinha mas era como se tivesse. Estavam arregalados como rodelas de laranja açucarada, húmidos, adocicados embora com um brilho ligeiramente ácido como é natural nos citrinos.
No céu, as estrelas começavam a polvilhar luminosamente o azul já índigo.
As mãos entrelaçaram-se como se quisessem permanecer assim para sempre. Para uma eternidade que ela não sabia o que significava mas que imaginava ser sinónimo de infinito.
Apertava a mão dele com força. Sentia-o fugir. Conseguia decifrar-lhe um odor intenso a lima dissolvida em limão e escondida em açúcar mascavado. Ele estava ali mas a sua alma estaria perdida em paragens que em tempos já partilhara com ele. Olhava para ela e sorria, fingindo contemplar o mar que tinha brilhos acobreados, tingidos do pôr do sol que de mansinho se instalara há já algum tempo. Para ele, um mar de sonhos felizes. Para ela um pôr do sol triste como o que sentia morar agora no receio do seu coração.
- O mar hoje está tão bonito... tão tranquilo para Outubro... – Disse ele, com um sorriso de quem pensava amar...
Ela concordou com um silêncio tímido, absorta no pensamento de limão. A lima entrava-lhe descaradamente pelas narinas a dentro, lembrando-lhe o vazio. O limão, amargo mas mais maduro, fugia-lhe, finava-se-lhe na alma... Tal como a laranja que há muito desaparecera.
Queria afastar aquele odor de perfume ácido mas sabia-se impotente... Por segundos, tentava concentrar-se no cheiro do açúcar mascavado que ele ainda exalaria por pouco tempo. Um cheiro de dissimulação, de misericórdia.
Queria enrolar-se no seu pescoço, abraçá-lo com as pernas, afagá-lo com as mãos mas não conseguia mais, sabia-o irremediavelmente perdido e a ela apenas lhe restava o seu próprio mas já comido doce de laranja. Não queria perder-se a ela também.
- Fecha os olhos. – Disse ela, levemente.
Ele sorriu perplexo com o pedido e feliz por poder deixar de vê-la com o seu próprio consentimento.
- O que vês? – Perguntou ela com medo da resposta mas ansiando por finalmente travar a derradeira batalha com o fantasma cítrico.
- Não sei... o que vejo... sei lá...- Disse ele até meio incomodado por ela lhe ter interrompido o sonho dourado com o fruto do seu agora imenso desejo.
- Respondo por ti... Vês o que queres, por quem sonhas... Vês alguém que não sou eu... – E dito isto, levantou-se, deixando a areia escorregar-lhe pela saia, caindo no areal, onde pertencia...
Não olhou para trás, já não precisava de ouvir a resposta, ela própria a tinha dado...
Nesse instante, libertou-se daquele odor a lima, a limão e açúcar mascavado que há tanto a entristecia. Afastou-se a passos rápidos e firmes com a certeza de que os seus olhos ainda eram como duas laranjas...
Texto escrito e ilustrado por mim

7 comentários:

Pandora disse...

Adoro a ilustração e gostei das metáforas com a fruta.

Sara V. disse...

Obrigado!
E fruta é saudável... Hehe!

Claire-Françoise Fressynet disse...

Olá Sara, BOA me teres mostrado este caminho, vi as pinturas e adorei esta, os textos tenho que voltar para ler com mais tranquilidade (ainda vi pouco das tertúlias e estou curiosa) beijosss

Claire-Françoise Fressynet disse...

Sabes que o meu nick é: ela anda a partir pedra e eu nas tintas heheheh

Carla disse...

perfeita a ilustração!
e que palavras com sabor a fruta tão deliciosas!
beijos

Sara V. disse...

Claire,
Obrigado pela visita!
Por acaso, pessoalmente, também gosto muito desta.
Então, fico à espera que voltes:)
Que nick girooo!!!
Beijos

Sara V. disse...

Carla,
Humm... dito assim, até parece que me sabe a laranja:):):)
Obrigado!
Bjs