quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A flor da idade

Era um quintal largo e comprido, verdejante e colorido. Primorosamente cuidado.
Frequentemente regado e acarinhado.
No canto inferior esquerdo estava um frondoso arbusto, verde como a relva. Mesmo ao lado, plantaram-lhe algumas rosas e cravos.
Quando chegou a Primavera de Maio, a rosa, que havia ficado desiludida com o cravo voltou-se para o sol que batia vindo de trás do arbusto. E foi assim que reparou nele e que ele com ela meteu conversa.
Os dias foram passando.
O jardim foi ficando mais florido e o calor acariciando as horas de longos tête-à-tête entre ambos.
O arbusto contou-lhe que tinha casado às cegas com uma silva e que farto de se picar ficou feliz quando a viu ser arrancada para fora daquele grande quintal.
A rosa, romântica, confessou-lhe ainda amar o cravo mas que por este ser tão leviano se viu obrigada, a bem de manter a sua sanidade mental, a terminar a relação. Para ela nada a entristecia mais do que tal desfecho para um lindo sonho de amor eterno.
O cravo ia namoriscando com uma dália e com uma gerbera mas não tirava os olhos dela. De qualquer modo, não se aproximava, lançava-lhe apenas o seu perfume e o seu ciúme.
O arbusto percorria com palavras as peripécias que passara com aquela a quem chamava “erva daninha”.
Os diálogos foram girando em torno da política ambiental, dos últimos químicos do mercado, das fotosínteses e das podas. Tinham-se encantado um pelo outro. A rosa e o arbusto.
Este achava-a demasiado jovem mas muito culta e esplendorosa, de uma beleza aveludada e ímpar. Não resistiu à sua jovialidade, ao seu aroma fresco e sedutor.
Por sua vez, à rosa o arbusto pareceu-lhe mais novo do que na realidade era. É certo que já tinha passado pela puberdade há muito, que era um Senhor, mas evidenciava uma forma física excelente e tinha a vantagem de já não ser demasiado infantil. O arbusto continuava apetecível mas já era maduro. Charmoso, embora simples. Tinha, no entanto, tudo o que ela procurava: sabedoria e tranquilidade.
Ela tinha o fogo que ele nunca experimentara, o ardor de quem sabe viver uma paixão. Com a silva, o arbusto só conhecera hostilidade e frigidez.
Pois, é verdade que a rosa é estonteantemente bela e tem pétalas suaves mas é bom não esquecer que também tem espinhos. Espinhos cravados pelo cravo.
Com calma e sem pressa, deixaram o tempo correr, entre água, oxigénio e ternuras. Sorvendo da terra a energia que lhes dava o dom de tornarem o seu amor crescente num passe de magia.
O arbusto, que foi o primeiro a deixar-se enfeitiçar por tal enamoramento, travava uma árdua batalha consigo próprio. Não lhe parecia que apaixonar-se por tão tenra rosa fosse prova de grande maturidade. De tempos a tempos, tinha crises de lucidez forçada que lhe chamavam à atenção para a diferença de idades entre os dois. Sentia-se frágil, completamente à mercê da rosa, com receio que ela não quisesse passar o resto dos seus dias com ele, que já estava a chegar a meio da vida. E uma rosa tão vistosa, que de certo atiçaria o desejo de tantos cravos e outros botões de flor na força da juventude...
Não, o arbusto não duvidava do que sentia por ela, nem da sua virilidade, mas sim do tempo que ela seria capaz de se manter junto a ele. Sofria horrores pensando que poderia desperdiçar os bons anos que lhe restavam com uma rosa que o deixasse só quando constatasse que ele entraria na decadência, altura em que provavelmente mais precisaria de companhia.
A rosa, que vivia aquele romance sem se aperceber do compromisso que se instalava e que, inconscientemente, ainda acreditava na possibilidade de se reconciliar com o cravo, passeava a leste por um amor que se apresentava inevitável. Despreocupada e leve... Sempre independente, rodando para o lado de onde o sol vinha mais luminoso. Talvez isso ainda prendesse mais o arbusto, que apesar de maduro se sentia novamente adolescente. Aliás, o arbusto era bem mais vulnerável já que nunca se tinha deliciado com um amor intenso... Enquanto a rosa amara desvairadamente o cravo, entregando-lhe com todo o fervor o coração e o caule. O arbusto só sabia o que era tal fogoso amor desde que conhecera a rosa. A silva era muito irritadiça, muito pouco dócil e muito menos imaginativa. Nem quando ambos eram da idade da rosa e se diziam apaixonados ele tinha sentido as suas folhas tremerem como agora tremiam cada vez que tocava na rosa.
A bonita rosa acordou certa manhã de Verão muito encalorada... Descobriu que já não sabia viver sem o arbusto, que já não conseguia libertar-se do orvalho das noites mais frescas sem ouvir as gargalhadas dele, sem sentir os seus troncos acariciarem-lhe impetuosamente as suas pétalas e o seu caule, arrancando-lhe os espinhos. E sem espinhos, ela deixou de ter defesas.
Apaixonou-se. Devagarinho, de mansinho, com muita música, muitas trocas de palavras, muitas simbioses de seiva... Mas apaixonou-se.
Deixou até de se interessar pelos olhares vigilantes que o cravo lhe continuava a lançar.
Deu-se conta, então, da diferença de idades entre ela e o arbusto. A primeira reacção foi de susto, nem sabe explicar porquê. A única explicação plausível seria a de se sentir insegura, de pensar que o arbusto (mais vivido e rodado) se poderia estar apenas a aproveitar da sua frescura... como quem diz, que talvez ele quisesse apenas "passar um bom bocado", sorver-lhe a beleza... Mas essa era uma explicação que não fazia qualquer sentido. Sabia-o. Ele estava realmente encantado com tamanha formosura mas igualmente preso à sua beldade interior, enfeitiçado pela sua alma e pelas cores da sua aura...
Como a rosa era ponderada e cautelosa mas depois de decidir algo nada a demovia, lançou-se perfumada e de cabeça naquele amor. Só perto dele se sentia em paz, protegida, compreendida.
Queria ficar com o arbusto para sempre. Amá-lo na relva do jardim, contar-lhe segredos, partilhar poemas... Queria jogar à fantasia, conversar sobre imaginação, fundir-se nos seus sonhos. E o arbusto, perante tantas certezas da rosa e tantas vontades dele, aventurou-se...
O amor não tem idade e o das flores muito menos.
E ainda bem que amar no jardim é livre, que a rosa e o arbusto vivem num mundo de liberdade, que se amam e escolheram amar, que se encontraram na flor da idade...
Hoje, de mãos dadas, apanham o sol de Inverno virados para o mesmo lado... de costas voltadas para o cravo e para as outras flores, para os ponteiros do relógio; muito longe da silva, apenas desfrutando de um verdadeiro amor...
Texto escrito e ilustrado por mim

5 comentários:

Pandora disse...

Belas rosas, belo texto. jinhos

Anónimo disse...

...definitivamente este conto é um dos teus mais belos contos e, como em tempos já disseretei imenso sobre ele, neste momento resta-me apenas dizer que mais uma vez amei voltar a ler, quiçá pela centésima vez...

Beijokitas GRANDES

J.Trovão

Sara V. disse...

Pandora,
Obrigado. Tu conheces o jardim, ah ah!
Bjs

Sara V. disse...

Trovão, meu querido!
Só tu, para me leres pela centésima vez, ah ah!
E foi assim, com este conto, que passei de Sara a Rosa:)

Beijocas mil

maria tereza disse...

parabens!!pl s belos blogs