sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A imagem do desejo

A lua estava quente, queimava, ardia como se fosse sol... Irradiava a sua luz mais poderosa sobre os pensamentos dele... Ele que não a esquecia, que a desejava eternamente a ela para todo o sempre. Que deitava a cabeça na almofada e revia as fotografias que lhe havia tirado com a sua máquina da memória...
- Espera, não te mexas... Fica assim... estás linda... Deixa-me tirar-te uma fotografia...
- Onde está a máquina?! - Ela ria-se, soltava algo entre um sorriso embevecido, ternurento, cândido e uma gargalhada de paixão, de provocação, de saber-se dona da alma e do desejo dele.
- Quando não te tiver ao pé de mim, vejo a fotografia...
- E o que farás com ela?! - Pergunta não precisando de ouvir a resposta.
Ele faria amor com ela, com a fotografia dela, sempre com ela...
Ao longo dos tempos, muitas foram as fotografias que ele lhe tirou... Foram tantas, tantas, que esgotou a memória da máquina fotográfica.
Agora, estava deitado, a vê-las. Já não a tinha, nem a ela nem à máquina fotográfica. Ficou apenas com o rolo. Com as imagens que o marcaram, com o desejo que nunca sentiu saciado, com a paixão que enfiou na gaveta para viver algo que em nada se assemelhava ao que sentira por ela e com ela, fingindo ser feliz, querendo ser feliz... Mas, na realidade, sabendo que apenas foi feliz enquanto a fotografava.
As fotografias forravam-lhe o travesseiro, os lençóis, a cama, as paredes do quarto.
E só ele as via.
Sufocavam-no. Traziam-lhe raiva. Despertavam-lhe amor. Um amor que não queria e que desejava sem controlar. Apertavam-lhe o pensamento. Aquelas fotografias mastigavam-lhe o estômago, contorciam-lhe as entranhas...
Via-a, com o vestidinho curto e rodado, justo até à cintura e decotado, com ténis-bota, sentada em cima de uma árvore, com os cabelos despenteados pelo vento, a sorrir-lhe, a fazer-lhe um olhar sensual para que ele a gravasse a ferro e fogo...
E ela? Ela alguma vez lhe tirara fotografias? Fotografias destas, que se guardam e que não se podem rasgar...
Talvez não...
Nunca lho confessara, nunca o mandar fazer pose - pensa... Talvez uma. Sem ele se ter apercebido.
Ela esculpiu o aroma, as palavras, a electricidade dele numa estátua e embrulhou-a num pano de cetim para mais tarde guardar no baú da recordação.
Raramente abre o baú, mas quando tal acontece, mesmo sem ser propositado, fica impregnada do cheiro do pescoço dele que era o mesmo cheiro do amor de ambos. As palavras doces e rudes, repletas do timbre do desejo e da clave de sol do erotismo bruto, assaltam-lhe os ouvidos.
Quando isso sucede, ela tapa-os com força. Não o quer ouvir. Ele faz parte dela para sempre mas não é dela. Ela também não é dele... Para quê ouvir o que lhe provocou tamanho prazer mas que a cobriu de mágoa? E consegue. Consegue deixar de ouvi-lo, a sussurrar, enquanto as peles se tocam com volúpia...
Ele não sabe... Não sabe que às vezes o baú das recordações dela também se abre e fica louco, a olhar para rasgos de passado que lhe toldam a emoção. Aproxima-se da insanidade.
Queria saber o que ela vê de olhos fechados, o que ela cheira, o que ela sente quando ama... Queria desesperadamente que ela continuasse a vê-lo, porque ele não a quer ver mas vê e não sabe como fazer para deixar de vê-la.
As fotografias que lhe forram a almofada e os lençóis não se rasgam, não amarelecem...
Ele terá oitenta anos e continuará a vê-la jovial e apetecível.
Ele perderá a virilidade mas continuará a sentir-se mais viril do que nunca sempre que a vir a brilhar, a sorrir, curvilínea, de seios feitos de sol e de rabo em forma de coração...
Porque não a amou para sempre, se até lhe jurou que se um dia, muito velhinhos, ele fosse o primeiro a partir, voltaria para a visitar, para a continuar a amar?
Onde se perderam tais promessas? Se o desejo não se desvaneceu, mesmo negado?
Ela partiu da vida dele, a arder de desejo, a sufocar de amor, mas não olhou mais para trás e conseguiu manter o baú 364 dias do ano fechado.
Ainda bem que ela não lhe tirou fotografias... fotografias que não poderia rasgar e que a atormentariam para sempre...
Basta-lhe o aroma...
Deitado na cama, com os olhos cerrados, sentido o calor do corpo que dorme profundamente a seu lado, ela atormenta-o.
Ele abre os olhos e sente um vazio que dói.
A mulher mexe-se e ele nem a sente... Está longe.
Sonha acordado. Está na cama da única que realmente amou. Mas a quem não soube amar porque não queria sentir-se prisioneiro de um amor assim, medonho de tamanho.
Nunca percebeu que com toda a liberdade que pudesse viver, estaria sempre na prisão. No presídio do prazer dela, do cosmos dela. E que a liberdade que conseguiu trouxe-lhe uma falsa felicidade e um vazio que nunca vai apagar.
O desejo permanece-lhe intranquilo, vagueando entre o sabor do passado e a curiosidade do presente... Entre cubos de gelo, leite condensado, chantilly e bagos de uvas... Entre uma cama fria... Entre luvas, chapéus, laços e lingerie... Entre todos os fétichismos com que mascara o que lhe falta...
Disse-lhe que havia de moldar alguém à sua semelhança...
Hoje, já percebeu que “semelhança” não substitui. E foi a ela que ele fotografou para sempre...
Texto escrito e ilustrado por mim

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi delicioso voltar a ler este conto...e a imagem está divinal, tal como todas que em que não utilizas o mouse...lol...

Ora toma...pensavas que ficavas sem resposta...eternamente...???...

Beijokitas GRANDES

J.Trovão