sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A passagem

A dada altura o seu coração parou.
E ela voou devagarinho, sem se dar conta. Quando abriu os olhos viu o seu corpo no chão. Tinha tido convulsões mas não as sentira. Sentiu uma paz indescritível. Levitava, sem saber como nem qual a direcção que seguia, ao sabor da curiosidade.
Pairava por cima dos carros da atarefada avenida da capital mesmo àquela alta hora da noite.
Via os estrangeiros passarem com copos na mão, as luzes dos faróis dos carros piscarem, os risos dos jovens que se divertiam... Parecia que ninguém reparava que ela jazia no chão. Ela também não se sentia adormecida sobre as pedrinhas que arranham. Não sentia dor ou aflição. Apenas liberdade, leveza. Sentia-se pássaro voando. Nem questionava a sua nova condição, da qual não tinha se quer noção.
Não sabe quanto tempo passou.
O tempo parecia não ter horas como aqui, em baixo, onde não se levita e onde tudo provoca reacção física.
De repente, sentiu-se amarrada, colada ao chão. O frio do solo percorreu-lhe a coluna, mas tinha preguiça. Não lhe apetecia levantar-se ou falar. Talvez, inconscientemente, quisesse levitar novamente. Ver outra vez o mundo de cima. Até que se deu conta das palavras de desespero do namorado, das lágrimas que deixava cair, e das bofetadas que lhe imprimia acreditando que essas lhe trariam um novo sopro de vida. Ao princípio, apenas as via, depois começaram a magoá-la, sentia-se a dizer-lhe para parar mas apercebera-se de que a sua voz também estava presa.
Era como se pairasse entre dois planos, o da Vida e o de Além-Vida.
E não entendia a angústia do rapaz e muito menos porque não parava de esbofeteá-la. Só depois do seu corpo concretizar o que a sua mente lhe ordenara entendeu que ele a julgara morta.
Teria morrido, ainda que por breves instantes?
Porque se sentira tão sem forma, tão capaz de tudo?
Porque levitara?
Porque experimentara a sensação do seu espírito se deslocar separado do seu corpo?
Será que tinha atravessado mesmo a Fronteira?
Será que a morte é isso? Uma nova Vida?
Se é, é relaxante, apaziguadora, indescritivelmente transcendental. O pensamento fala por si e leva-nos onde desejamos, circulando, voando. Poderemos conhecer o mundo sem pagar bilhete, sem fazer chek-in, sem ruído e sem dor. É como viver eternamente com um sorriso nos lábios.
Se é assim a morte, porque a tememos?!
Só anos mais tarde, ela interiorizou que já poderia ter morrido mas quando assim o sentiu também lhe assaltou o pensamento de que poderia ser privilegiada por ter vivido a experiência da Passagem e ter regressado com mais algumas certezas sobre o que até hoje permanece mais incerto aos Homens...
A Morte...
OBS.: Texto escrito e ilustrado por mim

3 comentários:

olga maria disse...

"O pensamento parece
uma coisa à tôa,
mas como é que a gente vôa
quando começa a pensar."
Este é um pequeno trecho de uma música que seu texto me fez lembrar... Quis ler também o outro texto, A Noite, mas não abriu. Você o retirou do blog?

Sara V. disse...

Oi, Olga!
Bonito trecho e imaginando com o sotaque quentinho brasileiro... soa gostoso!
"A noite" não cheguei a publicar, é um pequeno poema. Não sei porquê mas nem sempre consigo que os textos saiam com os parágrafos, deve ser algum problema do blog... Muitas vezes tenho que tentar e tentar até conseguir que saia como quero! Tem dias de "enguiço"!
Quando tiver tempo... talvez até logo... volto a tentar.

Pandora disse...

Lindo! Faz-me lembrar o contacto. Beijinhos