quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O mundo que vai e vem

Sentia-se encolhida, aconchegada pelo pêlo macio da alcatifa. Sentada com as pernas cruzadas e os próprios braços a abraçarem-na. O dia era de sol e os seus olhos voavam pela janela, pregados nos raios que se difundiam num céu azul.
A sua vida era um livro de cor, uma colectânea de vinil com acordes distintos.
A voz grossa e máscula do cantor enchia-lhe a alma de sensações, de sonhos, de sol.
Era uma voz tranquila, intemporal, talvez até pouco sensual mas que aliada a uma melodia dramática e romântica a percorria de forma profunda.
Se pintasse o sentimento faria apenas um traço na diagonal bem vermelho, vermelho vivo, vermelho-sangue , sobre um fundo azul... Mas ninguém lhe pediu que o pintasse ou descrevesse.
Queria apenas sentir o calor numa sala alva, numa carpete pérola...
Apetecia-lhe amar, amar com fervor... Sentir aqueles amores que dificultam o simples acto de respirar. Únicos momentos em que a falta de ar, de oxigénio, pode ser mais feliz do que o contrário. Como se tomasse uma mistura de químicos alucinantes. Queria sentir aquela entrega, aquele desespero que descontrola o corpo e que aperta a alma...
Inspirou fundo e, sem dar conta, sorriu. Não visualizava ninguém a quem dedicar tal desejo, tal sonho, ainda que por um único momento... Mas sozinha era capaz de senti-lo, abstractamente.
O céu era infinito.
A luz do sol encandeava-lhe a lucidez e a paixão crescia, de objecto ausente e inexistente, mas forte. O dramatismo dos acordes fazia o pensamento bailar, flutuar romanticamente mesmo que a um ritmo passado. E a sensação construída, como um castelo de nuvem, era tão real, tão inebriante... Que se amasse alguém, mesmo de forma menos sanguínea , e esse alguém lhe entrasse pela porta ou a voar pela janela, ela seria capaz daquela entrega sem limites.
Apetecia-lhe viver um momento assim, lendário, de Laura e Petrarca, de Romeu e Julieta, de Pedro e Inês... Uns instantes de amor não recomendado a cardíacos, impróprios para quem preza manter a sanidade... A sanidade que ela mantinha e da qual lhe apetecia fugir...
Tinha sempre a cabeça noutro lugar e os pés completamente fincados no chão.
Nem sempre a compreendiam , nem sempre a viam. Os outros tinham tendência a verem-na ou de uma ou de outra forma, mas não pareciam compreender a sua vastidão... Uma vastidão que até a ela perturbava...
E as palavras tocavam, docemente enroladas na voz masculina que as pronunciava tão pausadamente, tão descritivamente... Uma voz que não lhe suscitava paixão. Não se apaixonaria nunca por ela mas com a ajuda dela.
E como uma autista voltava a colocar a canção no princípio quando esta chegava ao fim...
Era como se quando a sensação da paixão ameaçava extinguir-se ela insistisse em atear-lhe a chama.
A música... A música não era a sua forma eleita de arte mas era sem dúvida a que mais depressa a fazia sentir... Como se preferisse uma bebida alcoólica licorosa mas a música fosse puro álcool etílico... Álcool etílico.
Ele rodou as chaves na porta. Ouviu-o .
A música chegou ao fim e estranhamente pareceu-lhe despropositado voltar a tocá-la...
Desnecessário...
O amor que lhe apetecia não tinha lugar na Terra. Não tinha...
Obs.: Escrito e ilustrado por mim

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