domingo, 15 de fevereiro de 2009

Onde está você agora?

“Eu tenho os meus desejos e planos secretos... só abro p’ra você mais ninguém”, trauteava a música cantada por Caetano Veloso enquanto desenhava despreocupada as flores do jardim. De repente, parou, imóvel, como se só nesse instante tivesse conseguido interiorizar o que cantava.
Levantou os olhos do papel e observou o horizonte, ávida por encontrar quem não estava... quem há muito desaparecera. Parecia querer sugar cada partícula de céu, inspirar cada átomo de oxigénio, como se sufocasse de tanto abraçar o infinito.
O peito encheu-se de ar, nostalgia, saudade, amor... sonho.
As flores do jardim perderam o interesse perante uma questão que lhe assaltou a mente.
“Quantas vezes se ama na vida? Quantas amei eu?”.
Responder pelos outros é sempre mais fácil... Ama-se sempre várias vezes, as que quisermos que os outros acreditem que têm capacidade para amar. A nossa resposta a nós próprios é sempre mais difícil... Pensamos amar e não amamos. Queremos amar e não amamos. Amamos e não queremos. Amamos e não percebemos. Descobrimos que amamos... E há quem nunca ame. E há quem ame mais do que uma vez. Mas só temos a certeza se amamos mesmo quando perdemos e quando julgamos amar de novo...
O amor “amor” é inconfundível... E só a ele contamos mesmo os nossos desejos e planos secretos...porque só esse amor nos faz sentir que nós somos duas pessoas num só corpo, numa só alma... E connosco não há segredos...
“Onde está você agora?”...
Os anos passaram e ela já sabia que um dia ele partiria... Que seria improvável ficarem juntos até ao fim... Lembrou-se, então, de como costumava angustiar-se antecipadamente com essa ideia. De como muito tempo antes dele ir embora já ela sofria com a separação, já imaginava como seria ficar rodeada de fotografias, roupas, sapatos, travesseiros que manteriam por uns tempos o odor que muito mais tarde só poderia voltar a cheirar na sua memória. Ela não conseguia deixar de se martirizar por antecipação e isso não era só negativo, tinha também a vantagem de lhe conseguir dar o valor merecido na altura.
Ela costumava olhá-lo muitas vezes como se olha alguém de quem se gosta e de quem se tem que despedir... Com muita atenção, muito sentimento.
Decorou cada fio de cabelo, cada ruga de expressão, cada brilho do seu olhar...Memorizou o timbre da sua voz, o som da sua gargalhada, a sua respiração acelerada... Guardou o toque das suas mãos, os seus movimentos.
“Às vezes, no silêncio da noite...”, as lágrimas escorreram-lhe pela cara ao ver-se mais velha, só, sem a sua amizade, o seu amor. Um amor que por muito tempo desvalorizou mas que a cada dia se fortaleceu, cresceu, tal como os filhos... Um amor que da parte dele sempre existiu. E existiu de forma tão inquestionável que a conquistou, que a arrebatou lentamente, sem pressões. Sem dar por isso, um dia ela acordou e soube que o que sentia por ele era amor. Um amor calmo, com picos de paixão, mas apaziguador, tranquilo...
“Quando a gente gosta é claro que a gente cuida...”.
Ele cuidava dela. Tornou-se o seu mundo. Foi muito mais do que o que um dia pensou que ele seria capaz. Foi, literalmente, o homem da sua vida. Seu amor, seu amigo, seu quase pai... Seu. Todo seu.
“Onde está você agora?”... “E se eu de repente me interessar por alguém?”...
Ela não era propriamente uma mulher solitária. Sempre gostou de flirtar, de seduzir, embora raramente se deixasse conquistar. Ver-se só entristecia-a mas era, igualmente, pessoa para ficar só. Nunca se entregaria a alguém apenas para fugir à solidão. E era uma mulher de hábitos, mesmo que alguns desses fossem o não cumprir regras e horários. Apaixonou-se pelo mundo que construíu com ele. Pelas mais pequeninas coisas. Por saber que os chinelos estão debaixo da cama, que o papel higiénico é colocado com a folha a sair de cima para baixo, que à sexta se coloca a roupa branca a lavar, que com tempo quente se faz muito mais amor...
Seria difícil interessar-se por mais alguém depois de tantos anos com ele... Tantos anos com alguém que a fez feliz...
A saudade foi digerida com beleza, com amor.
“Onde está você agora?”...
Texto escrito e ilustrado por mim

2 comentários:

Anónimo disse...

"Onde está você agora?"

Um encanto de ternura, verdade e poesia; a separação é sempre má e
absurda.
Mas eu prefiro acreditar :
-"que não há separação"
apenas um "interlude" que faz doer até final - mas não é o fim ...

Maria Luísa Adães

Sara V. disse...

Maria Luísa,

Eu também, eu também, Maria Luísa!Mas naqueles momentos muito "terra-a-terra" não há como deixar de sentir saudade... E é bom sinal, não é?! Enquanto o reencontro não chega...

Beijo
Sara