sábado, 23 de maio de 2009
Quadro Laranja
Quadro Laranja ou Boa Solidão
Técnica Mista sobre tela (acrílico e pastel de óleo)
70 cm x 70 cm
Sara - 2009
Esta obra encontra-se, actualmente (Maio) em exposição no Centro Cultural de Esgueira, Aveiro.
sexta-feira, 6 de março de 2009
Quadro Azul
quinta-feira, 5 de março de 2009
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Happy Valentine's Day
Quando tinha sete anos, um menino no dia de São Valentim ofereceu-lhe um postal, cuja mãe ajudou a desenhar. Ofereceu-lho assim muito a medos...
Ela corou mas guardou-o com ternura.
Quando tinha 12 anos, um menino disse-lhe no Dia dos Namorados:
- Queres ser minha namorada? - Ele gaguejava, com tanto nervosismo.
- Posso ser ... - Respondeu ela com borboletas no estômago.
- E agora, o que fazemos? - diz ele um pouco mais confiante.
- Nada... - Explica ela, cada vez mais corada.
- Podíamos dar um beijinho... - Insiste ele.
E ela ofereceu-lhe a bochecha.
Quando tinha 17 anos, foi antes do dia 14 de Fevereiro...
Um rapaz, com quem gostava de rir, de conversar sobre as aulas, sobre música, sobre filmes, e que achava muito giro, sem avisos ou pedidos, entre um sorriso, aproximou o rosto do dela. Ela pressentiu o que ele ia fazer e deixou-se ficar... O rosto dele aproximou-se, aproximou-se e ela fechou os olhos... Sentiu um doce beijo nos lábios.
Quando chegou o Dia dos Namorados recebeu um ursinho de peluche abraçado a um coração vermelho.
Quando tinha 20 anos, já tinha namorado... E na noite de São Valentim foram jantar fora, a um restaurante chinês. Trocaram muitos beijos entre chop suey de porco e galinha com amêndoas.
O rapaz ofereceu-lhe uma caixa de deliciosos bombons.
Quando tinha 25 anos, no Dia dos Namorados, começou por receber um ramo de rosas... Depois, foi presenteada com um jantarinho à luz de velas...
Aos 30 anos, já tinha casado... Já tinha um filho... Mesmo assim, no dia 14 de Fevereiro foram jantar fora. Um bom pretexto para mais um jantarinho a dois.
Aos 35 anos, o Dia de S. Valentim, passou-lhes ao lado. Esqueceram-se... Mas tiveram um bom dia e uma boa noite.
Aos 40 anos, o marido ofereceu-lhe uma rosa para celebrar a data e ela fez o jantar como de costume...
Aos 45 anos, a filha não a deixou esquecer-se do Dia dos Namorados, pediu-lhe dinheiro para comprar uma almofadinha amorosa para oferecer ao namorado.
Aos 50 anos, o marido ofereceu-lhe outra rosa... E disse: "Happy Valentine's Day !".
Aos 55 anos, já sem filhos a viverem em casa, e ainda com um casamento fantástico... Voltou a ter um Dia de S. Valentim daqueles que se guardam... O marido levou-a a passar a noite numa pousada fantástica... E ofereceu-lhe flores e bombons... E há muito tempo que não sentia tanto romance no ar...
Aos 60 anos, ela preparou um jantar simpático e passaram o Dia dos Namorados em frente à televisão... Mas de mão dada, por cima da manta, que Fevereiro foi um mês muito frio nesse ano...
Aos 65 anos, estava ele no seu último ano activo, antes da reforma, chegou a casa com um bonito bouquet de malmequeres e disse-lhe:
- Vamos jantar fora...
- Porquê?!
- Ah, um dia não são dias...
- Já estamos velhos para isso... Além de que todos sabemos que estes dias são uma treta...
- Uma treta... É verdade. Mas sabem bem, são sempre mais um motivo para te livrares da rotina, da cozinha... - E dá-lhe um beijo na testa.
Ela sorri e vai. Gostava de se fazer difícil...
Aos 70 anos, ele estava sentado na poltrona a ler o jornal e não se apercebeu que era Dia dos Namorados. Ela apareceu com um tailleur simpático e com os sapatos de verniz...
- Vá, leva-me a jantar fora...
- Estou a ver... Estás mesmo com vontade! Estás bonita!
- Tu não sabes que dia é hoje, pois não?! - Diz ela com um tom entre o rabugento e o trocista.
Aos 75 anos, ele tudo fez para não deixar o Dia do Cupido passar em vão... E como se voltasse à adolescência, ofereceu-lhe um ursinho de peluche...
Aos 80 anos, o Dia dos Namorados amanheceu com um sabor diferente, de saudade, de nostalgia... Ele acordou cedo e foi à florista, devagarinho, em passo lento, o único que conseguia...
Comprou um belo ramo de lírios do campo, salpicados por algumas rosas. Apanhou um táxi e dirigiu-se ao hospital. Ela estava tão debilitada... Talvez fosse o último Dia de São Valentim...
Mas os olhos de ambos brilhavam com a mesma intensidade de outros tempos mais jovens, talvez até com mais...
- És a melhor namorado do mundo! - Diz-lhe ele, enquanto lhe dá um doce beijo na face.
- E tu és o namorado da minha vida! - Retribui ela, apertando-lhe a mão, entrelaçando os seus dedos nos dele...
OBS.: Escrito e ilustrado por mim
NOTA: O Dia de S. Valentim comemorou-se apenas há seis dias, pelo que julgo não estar a publicar este texto, que tinha na gaveta, com grande atraso....
A Maria Luísa, do blog Prosa Poética, fez-me o convite para falar sobre AMOR, algo que se enquadra num desafio que aceitou. E o AMOR pode ser de diferentes "espécies" - amor de homem e mulher, de pai e filho, de amigos, etc. - mas apenas existe uma forma de amar: com carinho e com presença... Este texto relata uma verdadeira história de amor... Para mim, AMOR/AMAR é ESTAR, ESTAR BEM, ESTAR POR DESEJAR, ESTAR POR NECESSITAR; ESTAR PORQUE PRECISAM QUE ESTEJAMOS
domingo, 15 de fevereiro de 2009
Onde está você agora?
“Eu tenho os meus desejos e planos secretos... só abro p’ra você mais ninguém”, trauteava a música cantada por Caetano Veloso enquanto desenhava despreocupada as flores do jardim. De repente, parou, imóvel, como se só nesse instante tivesse conseguido interiorizar o que cantava.
Levantou os olhos do papel e observou o horizonte, ávida por encontrar quem não estava... quem há muito desaparecera. Parecia querer sugar cada partícula de céu, inspirar cada átomo de oxigénio, como se sufocasse de tanto abraçar o infinito.
O peito encheu-se de ar, nostalgia, saudade, amor... sonho.
As flores do jardim perderam o interesse perante uma questão que lhe assaltou a mente.
“Quantas vezes se ama na vida? Quantas amei eu?”.
Responder pelos outros é sempre mais fácil... Ama-se sempre várias vezes, as que quisermos que os outros acreditem que têm capacidade para amar. A nossa resposta a nós próprios é sempre mais difícil... Pensamos amar e não amamos. Queremos amar e não amamos. Amamos e não queremos. Amamos e não percebemos. Descobrimos que amamos... E há quem nunca ame. E há quem ame mais do que uma vez. Mas só temos a certeza se amamos mesmo quando perdemos e quando julgamos amar de novo...
O amor “amor” é inconfundível... E só a ele contamos mesmo os nossos desejos e planos secretos...porque só esse amor nos faz sentir que nós somos duas pessoas num só corpo, numa só alma... E connosco não há segredos...
“Onde está você agora?”...
Os anos passaram e ela já sabia que um dia ele partiria... Que seria improvável ficarem juntos até ao fim... Lembrou-se, então, de como costumava angustiar-se antecipadamente com essa ideia. De como muito tempo antes dele ir embora já ela sofria com a separação, já imaginava como seria ficar rodeada de fotografias, roupas, sapatos, travesseiros que manteriam por uns tempos o odor que muito mais tarde só poderia voltar a cheirar na sua memória. Ela não conseguia deixar de se martirizar por antecipação e isso não era só negativo, tinha também a vantagem de lhe conseguir dar o valor merecido na altura.
Ela costumava olhá-lo muitas vezes como se olha alguém de quem se gosta e de quem se tem que despedir... Com muita atenção, muito sentimento.
Decorou cada fio de cabelo, cada ruga de expressão, cada brilho do seu olhar...Memorizou o timbre da sua voz, o som da sua gargalhada, a sua respiração acelerada... Guardou o toque das suas mãos, os seus movimentos.
“Às vezes, no silêncio da noite...”, as lágrimas escorreram-lhe pela cara ao ver-se mais velha, só, sem a sua amizade, o seu amor. Um amor que por muito tempo desvalorizou mas que a cada dia se fortaleceu, cresceu, tal como os filhos... Um amor que da parte dele sempre existiu. E existiu de forma tão inquestionável que a conquistou, que a arrebatou lentamente, sem pressões. Sem dar por isso, um dia ela acordou e soube que o que sentia por ele era amor. Um amor calmo, com picos de paixão, mas apaziguador, tranquilo...
“Quando a gente gosta é claro que a gente cuida...”.
Ele cuidava dela. Tornou-se o seu mundo. Foi muito mais do que o que um dia pensou que ele seria capaz. Foi, literalmente, o homem da sua vida. Seu amor, seu amigo, seu quase pai... Seu. Todo seu.
“Onde está você agora?”... “E se eu de repente me interessar por alguém?”...
Ela não era propriamente uma mulher solitária. Sempre gostou de flirtar, de seduzir, embora raramente se deixasse conquistar. Ver-se só entristecia-a mas era, igualmente, pessoa para ficar só. Nunca se entregaria a alguém apenas para fugir à solidão. E era uma mulher de hábitos, mesmo que alguns desses fossem o não cumprir regras e horários. Apaixonou-se pelo mundo que construíu com ele. Pelas mais pequeninas coisas. Por saber que os chinelos estão debaixo da cama, que o papel higiénico é colocado com a folha a sair de cima para baixo, que à sexta se coloca a roupa branca a lavar, que com tempo quente se faz muito mais amor...
Seria difícil interessar-se por mais alguém depois de tantos anos com ele... Tantos anos com alguém que a fez feliz...
A saudade foi digerida com beleza, com amor.
“Onde está você agora?”...
Texto escrito e ilustrado por mim
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
O espelho da memória
Passava horas em frente ao espelho... Olhando apenas para o infinito... Não sorria nem chorava.
Deambulava solitária, confusa e perdida pelo reflexo de uma vida que estava na recta final.
Os cabelos prateados em tempos tinham sido negros da cor da noite mais escura de Inverno.
A pele enrugada já tinha sido mais macia do que a fita de cetim pérola que decorava a base do espelho...
Os seus olhos hoje baços haviam brilhado ao sabor das emoções e dos anos que para trás ficaram...
As suas mãos, essas, não as conseguia ver na imagem reflectida, não se encontravam dentro do ângulo que o espelho oval captava. Tinha-as pousadas no colo, segurando um fino lenço de senhora. Um hábito incutido desde tenra idade. “Uma menina deve trazer sempre um lencinho”... Quando se lembrasse, colocá-lo-ia na manga do casaco de malha.
As suas mãos tremelicavam... ainda bem que não as via... De qualquer modo, se as visse não as reconheceria...
O espelho de nada servia. Nele, apenas se perdia como se poderia perder em frente a uma qualquer janela ou até diante de uma simples parede branca, despida de qualquer pormenor.
Não sabia quem era. Conhecia somente quem tinha sido.
Lembrava-se que fora bebé – porque lho contaram e, pois, porque tinha inevitavelmente que ter começado assim -, menina de bibe branco que frequentara um colégio particular apenas para meninas de boa linhagem, adolescente encantada com o que a esperaria no destino, jovem mulher apaixonada por alguns rapazes do seu nível... mulher casada... triste, entediada e até ignorada...
Lembrou-se dele, do seu amor proibido, do seu amante plebeu... E uma lágrima de alegria escorreu-lhe pela face... No espelho apenas via reflectida a paixão que sentira mas que agora vivia através do reflexo da memória... Longe de tudo e de todos...
Lembrava-se de ter sido mãe. Carregara no seu ventre um filho que se perdera com a ingratidão do vento... da solidão...
Também se lembrou de como foi, na maior parte da sua vida, uma mulher só... Da viuvez a uma idade respeitosa mas sem ser demasiada. Do marido que pensara aprender a amá-la mas que nunca a amou... Não deu graças a Deus pelos casamentos já não serem contratos hoje em dia, não tinha lucidez para tanto, se tivesse daria.
O seu hoje era sempre o seu ontem. Às vezes, um ontem feliz, outras um ontem triste e nostálgico.
Esforçou-se por se lembrar do seu amor proibido... Ele fazia parte das únicas memórias aprazíveis... Tinha a vaga ideia de que era um homem ligado à arte, pobre, sem nome mas com cultura... sensível... iluminado por Deus, embora não pelos homens... Solteiro, talvez... Não se lembrava que ele tivesse algum impedimento... Só ela não o podia amar a ele... Sim, era o que lhe estava gravado no álbum das recordações.
Tardes mornas à beira-mar... trocas de mãos por baixo da mesa de alguns salões de chá... mas o que mais via reflectido no espelho era o sorriso dele, o sorriso terno dele... O melhor sorriso da sua memória, sem dúvida. Quis encontrá-lo depois da viuvez e não conseguiu... Era viúva há quase quinze anos, o marido falecera dois dias depois dela festejar sessenta primaveras... Porque não se lembrava de mais nada?
Continuava intrigada a olhar para o infinito reflexo do espelho...sem visualizar as mãos trémulas, o cabelo prateado, a pele ainda macia mas enrugada... Onde estariam os últimos quinze anos da sua vida? Onde?
O espelho mantinha-se mudo e cego... Parecia um infinito mar azul... um horizonte.
E ela perguntava-se pelo que estaria mais além... para lá do reflexo... Depois dos sessenta anos...
Teria que voltar atrás? Teria que resumir a sua memória a seis décadas?
E continuava a procurar pelo amor proibido... pelo seu amor...
Mas o espelho já nada refectia. Apenas a solidão de quem está só e presa na memória... obrigada a uma clausura.
- Hoje, fazes anos, meu amor... setenta e cinco... – Disse uma voz de homem também já apagada pela idade.
Ela voltou-se, ouviu um som... um som distorcido... não sabia se seria para ela...
- Preparei-te um jantar especial... Fiz aquele souflê que tanto gostas... – A voz do homem era apagada mas trémula de amor. E ele segurava uma bandeja com dois pratos, dois copos, talheres e um pequena jarra com uma rosa vermelha.
Ela olhou para ele, com o olhar perdido do costume... Não sabia quem ele era, embora parecesse simpático. Mas não lhe apetecia jantar. Voltou-se novamente para o espelho, queria encontrar quem tanto amou...
- Amor, sou eu... o teu amor.... – Disse ele com o coração apertado de tristeza mas ainda a sufocar de amor...
Agora que poderiam viver um amor não proibido, que poderiam estar juntos de alma e corpo... continuavam a encontrar-se só em pensamentos e desejos... em lembranças passadas... nas que o espelho ainda reflectia.
Se antes o amor que sentiam um pelo outro era castrado pelo marido dela, por toda a sociedade... agora continuava a ser oprimido. Censurado pela Alzheimer.
Obs.: Escrito e ilustrado por mim
Um Grande Nada
Passaram pouco menos de duas décadas, dois casamentos, alguns filhos dela e dele.
Ela casou com quem amou e e ele com quem quis amar. Ambos tentaram apagar o amor que sentiram um pelo o outro, embora em certas alturas tenha sido difícil.
Um dia, daqueles em que tanto um como o outro estavam disponíveis, o destino cruzou-os na Rua do Ouro.
Os olhares tocaram-se, brilharam, as pernas tremeram e o ritmo cardíaco disparou.
Em tom de visão rápida, instantânea e quase descartável, ela viu a dor da perda, a raiva, a indiferença, o desejo que às vezes voltava mas que logo afastava e uma certa repulsa passarem-lhe diante da vista, como quando as pessoas que morrem e voltam relatam que viram as suas vidas a correr a toda a velocidade.
Ele viu apenas o rosto dela quase 20 anos mais novo e sentiu no peito o aperto do amor-ódio que até hoje nutria por ela, embora muito camuflado e recalcado.
Ela sentiu esse amor-ódio e soube que era amor.
Durante vários anos, ela pensou que ele fora o amor da sua vida, aquele que a preencheu, que a inundou... Depois, acabou por considerar que talvez não fosse, que talvez tivesse continuado a acreditar naquilo para que programou o cérebro e o coração.
Veio-lhe à memória uma conversa com o marido...
- Já reparaste que a maioria das pessoas não casa com o grande amor da sua vida? Acho que quase todas as que tenho conhecido estão casadas com alguém que amam, que pensam ou querem amar mas não com aquela pessoa que mais amaram, na verdade.
O marido sorriu, como se achasse o pensamento louco. Mas vindo dela os pensamentos loucos nem eram assim tão loucos, provocavam-lhe vontade de esboçar um sorriso, talvez pela forma como ela expressava o que pensava ou pelos pormenores aparentemente insignificantes em que reparava. Mas depois, acenou afirmativamente com a cabeça.
- É verdade! Olha, quase todas as minhas amigas e amigos, para já não falar em conhecidos, não estão casados com as paixões da sua vida... Alguns se os voltassem a encontrar até abandonariam os maridos e as mulheres... ou não, talvez ficassem, por causa dos filhos... Mas sabes o que é mesmo curioso?!
- O quê? – Perguntou ele, ainda sorridente.
- É que na maioria dos casos, as mulheres viveram o seu grande amor antes de casarem e os homens depois de casarem!
Ele soltou uma gargalhada, mas acrescentou:
- Explica lá melhor!
- Pois, as minhas amigas costumam falar de um namorado da adolescência ou da época da faculdade que as marcou... E os homens, pelo que tenho constatado, falam ou numa amante que os enfeitiçou e que se não fossem as circunstâncias da altura ainda hoje viveriam felizes com ela ou noutra qualquer mulher que surgiu na vida deles depois do primeiro casamento. Por exemplo, a maior parte dos homens que teve mais do que um casamento costuma dizer que a segunda ou a terceira mulher, por exemplo, é muito melhor...
Ele riu-se com gosto e confirmou.
- Parece que nunca é como pensamos, descobrimos isso quando crescemos... Será triste?
Ele encolheu os ombros nostalgicamente.
- Pelo que me leva a retirar uma conclusão meia doida: as mulheres descobrem o grande amor mais cedo e os homens, como em tudo na vida, mais tarde. Só mais tarde estão preparados para amar. Bem sei que parece tolice mas até é verdade, na maior parte dos casos. Assim, uma mulher de 20 devia encontrar o grande amor com um homem de 40, estariam perfeitos um para o outro! – Riram-se ambos com tal disparate, ou não.
Havia nela com o marido uma cumplicidade deliciosa. Ela pensava, falava e ele ouvia com atenção, deleitava-se com as suas palavras e ideias roubadas ao vento e às vezes acrescentava.
Tinham uma forma de estar que os apaziguava, embora ela, por vezes, gostasse que fosse ele o “pensador da pólvora”. Mas viviam bem, harmoniosamente e o amor fluia sem entraves, obstáculos e mesquinhez. Tanto na alma como no corpo.
Ainda pensou para consigo... “é como se as mulheres se deixassem marcar pelo florescer e os homens pelo amadurecer”.
Todavia, na Rua do Ouro, pareceu-lhe que para todas as regras há sempre uma excepção.
Aquele que estava à sua frente tinha sido marcado por ela antes de se casar com a mulher.
Cumprimentaram-se cordialmente e decidiram ir tomar café, como se o facto de se encontrarem fosse uma festa, uma alegria intensa para dois bons amigos que há muito não se viam. Não era nada disso. Nem era algo muito prazeiroso nem muito martirizante. Este encontro fazia lembrar aquela sensação de gaguez, quando se fica gago de paixão, ansioso e a rebentar, o que por vezes é bom e outras terrivelmente stressante. Muitas sensações à mistura, muitos paladares mas os ingredientes não combinavam na perfeição.
Nitidamente, ao sentarem-se, ávidos de curiosidade de saberem da vida um do outro, ainda mantiveram as defesas. O “duelo” estava no ar... Mas não tinham a certeza de querer continuar aquele jogo de competição e orgulho que os desgastou. Por outro lado, sentiam uma vontade pulsante de se atirarem nos braços um do outro, quanto mais não fosse para se descobrirem a si próprios, aos seus sentimentos recalcados e aos que prevaleceram.
- Então, o que fazes? – Perguntou ele com um sorriso charmoso que a deixava neurótica, não percebendo se escondia gozo ou apenas desejo de seduzir.
- Tenho a minha própria empresa... e tu?
- Muito bem! Eu, gosto de um bom ordenado mas de poucas responsabilidades... pelo que ainda estou naquela firma, embora tenha sido várias vezes promovido... – Fez-se um silêncio um pouco sufocante. Sorveram-se uns golos de café na esperança de ver quem quebraria a ausência de palavras. E ele continuou...
- Ainda continuas casada com...?
-Sim! Claro! E tu, que sempre casaste com... também? Presumo...
- Sim, sim! – O ruído de chávenas e conversas de fundo instalou-se novamente. Talvez ambos se lembrassem de que estiveram quase a casar um com o outro... Mas ninguém quis tocar no assunto, saudavelmente. A conversa de aparências manteve-se, desta vez por ela...
- Tenho dois filhos, o João e a Madalena...
- Eu tenho a Eduarda e a Maria...
Ela sentiu o olhar dele pesar-lhe, morder-lhe o pescoço...as mãos rodearem-lhe as ancas. Ele sentiu-a estática, consentindo tudo com fervor mas controlando-se.
O café terminou quando ela recebeu um telefonema do marido a pedir-lhe para ir ter com ele para finalmente irem comprar a prenda de anos da filha, que celebraria o 14º aniversário daqui a dois dias.
Trocaram rapidamente os números telefónicos, como que mecanicamente, como se fosse algo natural entre amigos que tinham perdido ocasionalmente o contacto.
Passados 15 dias, ele telefonou-lhe. Marcaram encontro no Guincho, numa esplanada à beira-mar, acreditando que iriam passar uma tarde a conversar sobre o passado. Ela pensou que com este novo encontro o que tinha ficado mal resolvido iria resolver-se de vez, até porque queria beijá-lo mas achava não conseguir e também não querer. Tinha muita mágoa.
Ele sabia o que queria e não era o passado, era o presente. Um presente que fosse feito do Hoje e do Ontem. E não era homem para perder tal Agora por uma mulher e duas filhas. Não pensava que o que queria, se ela quisesse o mesmo, podia vir a interferir com o que tinha ou reabrir ainda mais as feridas que ficaram.
Quando se encontraram, sob o sol simpático de Maio, beijaram-se desesperadamente. Ele pagou a coca-cola que tinha pedido e seguiram sem perguntas para o hotel. Era inevitável. No fundo, talvez ela também soubesse que se tinha deslocado de Lisboa ao Guincho para matar as saudades, os sonhos.
Foi como sempre. Desgastante, relaxante, suado, puro fogo de arco-íris.
Ela levantou-se da cama, vestiu a camisa, abriu a janela e puxou do cigarro que há dois anos trazia na carteira...
- Ainda fumas? – Perguntou ele.
- Não. Deixei há dois anos... – Inspirou com tanta força o fumo do cigarro como se quisesse sugar a sua alma, a sua recaída... E depois expirou-o demoradamente. Evitou olhá-lo. Sabia que ele a apreciava centímetro a centímetro, que talvez estivesse a comparar as suas pernas que agora carregavam quase quatro décadas de vida com aquelas onde se perdera antes... Embora as comparações não significassem nada. Mas sentia-se incomodada, pois sabia que ele a olhava como se ela fosse dele e sempre lhe tivesse pertencido, apesar dele estar ali a entregar-se a ela, a julgar que nunca deixara de ser dela... Ela quisera-o mas não o queria. Disso tinha a certeza. E ninguém é de ninguém, por muito que se acredite ou que simplesmente se queira.
Ele levantou-se, como sempre sem pudores e preconceitos, com o corpo despido aproximou-se dela por trás para a abraçar, enquanto aproveitava para lhe sentir o cheiro do cabelo. Ninguém tinha um perfume natural tão embriagante... Só ela.
Ela fechou os olhos e deixou que ele lhe sorvesse o aroma. Nesse instante, sentiu frio... tristeza, nostalgia. Não conseguia amá-lo. As lembranças que não a deixaram esquecê-lo não eram as mesmas que lhe impediam o amor, mas ambas existiam dentro de si. E não seria capaz de se entregar, ali, outra vez a ele. Se o fizesse seria como se estivesse a violar-se a si própria.
Lentamente, soltou-se-lhe dos braços e vestiu o resto da roupa. Calçou os sapatos, sempre muda. Ele percebeu que ela ia partir de vez, que o tempo que levou a levantar as suas barreiras não se perdoa. E depois do frenesim que sentiu no coração, na alma e no sexo, estava a ser consumido pela perda, a ser tomado pelo pior luto, o luto de quem enterra quem não morreu.
Sentia a terra a cobrir-lhe os braços, as pernas, o rosto... A falta de ar, a claustrofobia de quem já só ama sozinho porque não soube amar acompanhado.
Ela era o grande amor da sua vida e fugia-lhe como terra fina por entre os dedos... Terra que ao cair no chão se mistura com outra e não se consegue perceber onde começa ou onde acaba, porque o amor dela por ele já não tinha força para formar um pequeno monte, para se distinguir, para se diferenciar. No fundo, o amor dela por ele já não era capaz de se encontrar. Tinha-se diluído em desejos pedidos em sonhos e em novos amores que foi vivendo.
As lágrimas escorreram-lhe pela cara...
- Não vás... não quero... – Articulou, sentindo-se ainda mais nu, comido por uma tamanha fragilidade.
- Nunca devia ter vindo... Desculpa. – Respondeu ela, olhando-o nos olhos, já sem mágoa ou raiva... Apenas com pena mas aliviada. Este foi provavelmente o erro que mais necessitou cometer.
Ela saiu. Conduziu até Lisboa, a uma velocidade média, com os vidros descidos, deixando o ar levar-lhe a memória. A memória que voava em direcção ao mar revolto. Estavam marés vivas, como diria seu pai, “Neptuno estava aborrecido”...
Quando chegou a casa olhou para o marido. Ele sim, era o grande amor da sua vida. Um amor que tinha rejeitado na sua plenitude até então. Ele era aquele que não a deixou amar sozinha, que sempre a acompanhou, com quem se sentia ela própria e com quem podia ser ela própria, sem necessidade de jogos, de fétiches e até de lembranças.
Sentado na cama do hotel, olhando-se no espelho do roupeiro, sem se ver, ele chorava as lágrimas de saber que a amava, porque ela era a mesma, não mudara. Ele sim, transformara-se em alguém pior, mais infeliz, perseguindo quimeras que não lhe diziam nada... Ela há muito que não o amava, embora tivesse pensado que sim, ofuscada pela imagem que tinha dele mas que não era ele.
Um grande amor, um grande nada.
Obs.: Escrito e ilustrado por mim
O mundo que vai e vem
Sentia-se encolhida, aconchegada pelo pêlo macio da alcatifa. Sentada com as pernas cruzadas e os próprios braços a abraçarem-na. O dia era de sol e os seus olhos voavam pela janela, pregados nos raios que se difundiam num céu azul.
A sua vida era um livro de cor, uma colectânea de vinil com acordes distintos.
A voz grossa e máscula do cantor enchia-lhe a alma de sensações, de sonhos, de sol.
Era uma voz tranquila, intemporal, talvez até pouco sensual mas que aliada a uma melodia dramática e romântica a percorria de forma profunda.
Se pintasse o sentimento faria apenas um traço na diagonal bem vermelho, vermelho vivo, vermelho-sangue , sobre um fundo azul... Mas ninguém lhe pediu que o pintasse ou descrevesse.
Queria apenas sentir o calor numa sala alva, numa carpete pérola...
Apetecia-lhe amar, amar com fervor... Sentir aqueles amores que dificultam o simples acto de respirar. Únicos momentos em que a falta de ar, de oxigénio, pode ser mais feliz do que o contrário. Como se tomasse uma mistura de químicos alucinantes. Queria sentir aquela entrega, aquele desespero que descontrola o corpo e que aperta a alma...
Inspirou fundo e, sem dar conta, sorriu. Não visualizava ninguém a quem dedicar tal desejo, tal sonho, ainda que por um único momento... Mas sozinha era capaz de senti-lo, abstractamente.
O céu era infinito.
A luz do sol encandeava-lhe a lucidez e a paixão crescia, de objecto ausente e inexistente, mas forte. O dramatismo dos acordes fazia o pensamento bailar, flutuar romanticamente mesmo que a um ritmo passado. E a sensação construída, como um castelo de nuvem, era tão real, tão inebriante... Que se amasse alguém, mesmo de forma menos sanguínea , e esse alguém lhe entrasse pela porta ou a voar pela janela, ela seria capaz daquela entrega sem limites.
Apetecia-lhe viver um momento assim, lendário, de Laura e Petrarca, de Romeu e Julieta, de Pedro e Inês... Uns instantes de amor não recomendado a cardíacos, impróprios para quem preza manter a sanidade... A sanidade que ela mantinha e da qual lhe apetecia fugir...
Tinha sempre a cabeça noutro lugar e os pés completamente fincados no chão.
Nem sempre a compreendiam , nem sempre a viam. Os outros tinham tendência a verem-na ou de uma ou de outra forma, mas não pareciam compreender a sua vastidão... Uma vastidão que até a ela perturbava...
E as palavras tocavam, docemente enroladas na voz masculina que as pronunciava tão pausadamente, tão descritivamente... Uma voz que não lhe suscitava paixão. Não se apaixonaria nunca por ela mas com a ajuda dela.
E como uma autista voltava a colocar a canção no princípio quando esta chegava ao fim...
Era como se quando a sensação da paixão ameaçava extinguir-se ela insistisse em atear-lhe a chama.
A música... A música não era a sua forma eleita de arte mas era sem dúvida a que mais depressa a fazia sentir... Como se preferisse uma bebida alcoólica licorosa mas a música fosse puro álcool etílico... Álcool etílico.
Ele rodou as chaves na porta. Ouviu-o .
A música chegou ao fim e estranhamente pareceu-lhe despropositado voltar a tocá-la...
Desnecessário...
O amor que lhe apetecia não tinha lugar na Terra. Não tinha...
Obs.: Escrito e ilustrado por mim
Noite
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
A passagem
A dada altura o seu coração parou.
E ela voou devagarinho, sem se dar conta. Quando abriu os olhos viu o seu corpo no chão. Tinha tido convulsões mas não as sentira. Sentiu uma paz indescritível. Levitava, sem saber como nem qual a direcção que seguia, ao sabor da curiosidade.
Pairava por cima dos carros da atarefada avenida da capital mesmo àquela alta hora da noite.
Via os estrangeiros passarem com copos na mão, as luzes dos faróis dos carros piscarem, os risos dos jovens que se divertiam... Parecia que ninguém reparava que ela jazia no chão. Ela também não se sentia adormecida sobre as pedrinhas que arranham. Não sentia dor ou aflição. Apenas liberdade, leveza. Sentia-se pássaro voando. Nem questionava a sua nova condição, da qual não tinha se quer noção.
Não sabe quanto tempo passou.
O tempo parecia não ter horas como aqui, em baixo, onde não se levita e onde tudo provoca reacção física.
De repente, sentiu-se amarrada, colada ao chão. O frio do solo percorreu-lhe a coluna, mas tinha preguiça. Não lhe apetecia levantar-se ou falar. Talvez, inconscientemente, quisesse levitar novamente. Ver outra vez o mundo de cima. Até que se deu conta das palavras de desespero do namorado, das lágrimas que deixava cair, e das bofetadas que lhe imprimia acreditando que essas lhe trariam um novo sopro de vida. Ao princípio, apenas as via, depois começaram a magoá-la, sentia-se a dizer-lhe para parar mas apercebera-se de que a sua voz também estava presa.
Era como se pairasse entre dois planos, o da Vida e o de Além-Vida.
E não entendia a angústia do rapaz e muito menos porque não parava de esbofeteá-la. Só depois do seu corpo concretizar o que a sua mente lhe ordenara entendeu que ele a julgara morta.
Teria morrido, ainda que por breves instantes?
Porque se sentira tão sem forma, tão capaz de tudo?
Porque levitara?
Porque experimentara a sensação do seu espírito se deslocar separado do seu corpo?
Será que tinha atravessado mesmo a Fronteira?
Será que a morte é isso? Uma nova Vida?
Se é, é relaxante, apaziguadora, indescritivelmente transcendental. O pensamento fala por si e leva-nos onde desejamos, circulando, voando. Poderemos conhecer o mundo sem pagar bilhete, sem fazer chek-in, sem ruído e sem dor. É como viver eternamente com um sorriso nos lábios.
Se é assim a morte, porque a tememos?!
Só anos mais tarde, ela interiorizou que já poderia ter morrido mas quando assim o sentiu também lhe assaltou o pensamento de que poderia ser privilegiada por ter vivido a experiência da Passagem e ter regressado com mais algumas certezas sobre o que até hoje permanece mais incerto aos Homens...
A Morte...
OBS.: Texto escrito e ilustrado por mim
terça-feira, 11 de novembro de 2008
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
A imagem do desejo
A lua estava quente, queimava, ardia como se fosse sol... Irradiava a sua luz mais poderosa sobre os pensamentos dele... Ele que não a esquecia, que a desejava eternamente a ela para todo o sempre. Que deitava a cabeça na almofada e revia as fotografias que lhe havia tirado com a sua máquina da memória...
- Espera, não te mexas... Fica assim... estás linda... Deixa-me tirar-te uma fotografia...
- Onde está a máquina?! - Ela ria-se, soltava algo entre um sorriso embevecido, ternurento, cândido e uma gargalhada de paixão, de provocação, de saber-se dona da alma e do desejo dele.
- Quando não te tiver ao pé de mim, vejo a fotografia...
- E o que farás com ela?! - Pergunta não precisando de ouvir a resposta.
Ele faria amor com ela, com a fotografia dela, sempre com ela...
Ao longo dos tempos, muitas foram as fotografias que ele lhe tirou... Foram tantas, tantas, que esgotou a memória da máquina fotográfica.
Agora, estava deitado, a vê-las. Já não a tinha, nem a ela nem à máquina fotográfica. Ficou apenas com o rolo. Com as imagens que o marcaram, com o desejo que nunca sentiu saciado, com a paixão que enfiou na gaveta para viver algo que em nada se assemelhava ao que sentira por ela e com ela, fingindo ser feliz, querendo ser feliz... Mas, na realidade, sabendo que apenas foi feliz enquanto a fotografava.
As fotografias forravam-lhe o travesseiro, os lençóis, a cama, as paredes do quarto.
E só ele as via.
Sufocavam-no. Traziam-lhe raiva. Despertavam-lhe amor. Um amor que não queria e que desejava sem controlar. Apertavam-lhe o pensamento. Aquelas fotografias mastigavam-lhe o estômago, contorciam-lhe as entranhas...
Via-a, com o vestidinho curto e rodado, justo até à cintura e decotado, com ténis-bota, sentada em cima de uma árvore, com os cabelos despenteados pelo vento, a sorrir-lhe, a fazer-lhe um olhar sensual para que ele a gravasse a ferro e fogo...
E ela? Ela alguma vez lhe tirara fotografias? Fotografias destas, que se guardam e que não se podem rasgar...
Talvez não...
Nunca lho confessara, nunca o mandar fazer pose - pensa... Talvez uma. Sem ele se ter apercebido.
Ela esculpiu o aroma, as palavras, a electricidade dele numa estátua e embrulhou-a num pano de cetim para mais tarde guardar no baú da recordação.
Raramente abre o baú, mas quando tal acontece, mesmo sem ser propositado, fica impregnada do cheiro do pescoço dele que era o mesmo cheiro do amor de ambos. As palavras doces e rudes, repletas do timbre do desejo e da clave de sol do erotismo bruto, assaltam-lhe os ouvidos.
Quando isso sucede, ela tapa-os com força. Não o quer ouvir. Ele faz parte dela para sempre mas não é dela. Ela também não é dele... Para quê ouvir o que lhe provocou tamanho prazer mas que a cobriu de mágoa? E consegue. Consegue deixar de ouvi-lo, a sussurrar, enquanto as peles se tocam com volúpia...
Ele não sabe... Não sabe que às vezes o baú das recordações dela também se abre e fica louco, a olhar para rasgos de passado que lhe toldam a emoção. Aproxima-se da insanidade.
Queria saber o que ela vê de olhos fechados, o que ela cheira, o que ela sente quando ama... Queria desesperadamente que ela continuasse a vê-lo, porque ele não a quer ver mas vê e não sabe como fazer para deixar de vê-la.
As fotografias que lhe forram a almofada e os lençóis não se rasgam, não amarelecem...
Ele terá oitenta anos e continuará a vê-la jovial e apetecível.
Ele perderá a virilidade mas continuará a sentir-se mais viril do que nunca sempre que a vir a brilhar, a sorrir, curvilínea, de seios feitos de sol e de rabo em forma de coração...
Porque não a amou para sempre, se até lhe jurou que se um dia, muito velhinhos, ele fosse o primeiro a partir, voltaria para a visitar, para a continuar a amar?
Onde se perderam tais promessas? Se o desejo não se desvaneceu, mesmo negado?
Ela partiu da vida dele, a arder de desejo, a sufocar de amor, mas não olhou mais para trás e conseguiu manter o baú 364 dias do ano fechado.
Ainda bem que ela não lhe tirou fotografias... fotografias que não poderia rasgar e que a atormentariam para sempre...
Basta-lhe o aroma...
Deitado na cama, com os olhos cerrados, sentido o calor do corpo que dorme profundamente a seu lado, ela atormenta-o.
Ele abre os olhos e sente um vazio que dói.
A mulher mexe-se e ele nem a sente... Está longe.
Sonha acordado. Está na cama da única que realmente amou. Mas a quem não soube amar porque não queria sentir-se prisioneiro de um amor assim, medonho de tamanho.
Nunca percebeu que com toda a liberdade que pudesse viver, estaria sempre na prisão. No presídio do prazer dela, do cosmos dela. E que a liberdade que conseguiu trouxe-lhe uma falsa felicidade e um vazio que nunca vai apagar.
O desejo permanece-lhe intranquilo, vagueando entre o sabor do passado e a curiosidade do presente... Entre cubos de gelo, leite condensado, chantilly e bagos de uvas... Entre uma cama fria... Entre luvas, chapéus, laços e lingerie... Entre todos os fétichismos com que mascara o que lhe falta...
Disse-lhe que havia de moldar alguém à sua semelhança...
Hoje, já percebeu que “semelhança” não substitui. E foi a ela que ele fotografou para sempre...
Texto escrito e ilustrado por mim
sábado, 11 de outubro de 2008
E depois do amor?
Ele já tinha amado muito. Talvez nem sempre com o coração mas tinha dado muito amor.
Amou sem olhar a credos, a cores, a feitios...
Amou sem olhar a quem.
Pensou amar quando não amava.
Perdeu-se em promessas que não cumpriu, em palavras que mentiu, em pensamentos que esqueceu e em camas onde dormiu.
Divagou por olhares ardentes, por sentimentos dormentes.
Apaixonou-se sem saber. Teve receio de perder.
No entanto, depois de tantas almofadas de penas, de tantos bancos traseiros, de imensas alcatifas e de diversos sofás, sentia-se só. Uma solidão sem explicação. Era casado e raras foram as vezes que não tivera amantes.
Dito assim, parece tratar-se de um homem já maduro, que gozara muitos anos de vida, possuidor de uma leviandade sem fim. Mas não. Estava muito perto dos trinta. Apenas. Casara cedo e fora pai duas vezes.
Em casa não lhe faltava amor mas ele teimava em procurá-lo. Sabia ser o amor de alguém que não era o seu amor. Mesmo que todas as noites regressasse, que beijasse os filhos e quem por ele tinha amor, a sua alma estava cheia de vazio, de sonho, de ilusão... Queria porque queria amar e se não amasse não se sentiria completo. Não se sentiria homem.
Costumava dizer que se sentia mal por não ser capaz de retribuir o amor que lhe davam a mulher e as amantes, que mais não eram do que simples tentativas de encontrar o seu verdadeiro amor. Havia-se precipitado, enganado. Seguido um impulso, uma paixão. Mas as paixões são como um caldeirão de água a ferver... a borbulhar. Quando o fogo se extingue, elas arrefecem.
Ao contrário do que se possa pensar, o facto de ter dormido com muitas mulheres, de as ter amado em mil sítios e posições não era para ele motivo de orgulho, mas sim de azar. Significava que não tinha ainda amado quem queria e era capaz de amar e que a busca teria que continuar, não dando sossego ao seu corpo e muito menos à sua alma, já tão provecta de cansaço e frustração.
E a solidão que sentia crescia de dia para dia, de hora para hora, de minuto para minuto.
Tinha uma ambição desmedida que considerava natural...
Um desejo que lhe parecia poder satisfazer por direito...
Um sonho que era o único que o fazia suportar o tempo desperdiçado.
O amor. O verdadeiro amor.
Um dia, por acaso, ao calhas e quiçá por vontade, apaixonou-se.
Nova paixão.
Até aqui nada diferente. Talvez contraditório... Isso, sim. Afinal, ele era um homem eternamente apaixonado, vazio e infeliz. Alguém que procurava com tal avidez o amor mas que só encontrava paixão, que distribuía beijos, carícias, pedaços do seu órgão viril que traziam infelicidade a muitas mulheres. À dele que, definitivamente, o amava e às que ia tendo e que talvez o amassem ou assim pensassem.
Num momento muito preciso, em que os ponteiros do seu coração bateram ao ritmo de outra aura, a nova paixão transformou-se em amor. No amor que ele sonhava, que ele queria... pelo qual enganava, atraiçoava e fugia, mesmo antes de o encontrar.
Reconheceu-o logo depois de a amar.
Despido, de pernas e braços entrelaçados, entre mechas de lençóis revoltos e amachucados, com a cabeça na almofada olhou para ela e sorriu... nada disse. Não se levantou e muito menos se vestiu.
Deixou-se ficar, ali, depois do amor... sorvendo o brilho do olhar dela, a suavidade do seu cabelo, a palidez da sua pele...
Pela primeira vez, sentiu-se homem. Homem inteiro.
Depois de muitos leitos de prazer... o derradeiro, o prometido.
Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto. Uma lágrima de emoção.
A sua alma e o seu corpo estavam de tal forma saciados...
No entanto, descobriu uma tristeza. A tristeza de querer e não dever. Martirizou-se, consumiu-se.
O vazio desaparecera mas conheceu o reverso do que pedira. A outra face do amor. E o amor para quem está preso pode ser uma loucura tortuosa.
Este amor fez-lhe ter ainda mais a noção do quanto havia sido infeliz e isso nem sempre é belo, nem sempre é mágico.
Soube-o quase desde o instante em que se cruzou com ela, ainda antes de saberem quem era um e quem era o outro...
Dispersos em palavras e outros tantos lençóis, ele amava-a, com toda a força do seu Ser.
Na tarde seguinte a fazerem amor pela primeira vez, estando separados de manhã, ele escreveu um postal...
“Nunca tinha entendido porque dormiam as pessoas a seguir de fazerem amor... Nunca.”
Nessa noite voltaram a amar-se e ele adormeceu, muito abraçadinho a ela, protegendo-a da noite fria com o calor do seu corpo.
No postal continuou...
“É que de todas as vezes que amei, ou pensei ter amado, logo após o amor acabar sentia um frenesim... uma inquietude... Uma bola de energia eléctrica que me fazia inventar um milhão de coisas para fazer... ou simplesmente ter uma vontade incontrolável – e quase repugnante – de fugir da cama para fora, da pessoa que tinha amado, do mundo...”.
Mais uma noite de libido, trocas de saliva, de prazer passou. Outra, que ele dormiu. E acrescentou ao postal...
“Agora sei porque as pessoas que de verdade amam adormecem depois do amor... Porque esgotaram a sua energia, a sua alma... A sua entrega foi total. E o que sobrou foi Paz. Sinto essa tranquilidade... Poderia ficar eternamente preso a esta cama, que seria eternamente feliz. Isto é o Amor”.
Entregou-lhe, então, o postal. Nada mais parecia haver para lhe acrescentar... Talvez e somente o que depois de a ver concluir a leitura lhe disse, com os olhos repletos de amor... - Amo-te, de verdade. Sem dúvidas ou impulsos. É amor o que sinto por ti...
E assim, ele quis viver sem mais prisões, impedimentos e traições o seu amor.
Mas não viveu... Continuou acorrentado. Talvez não por escolha sua...
Para ela, terá ele sido uma paixão?
Texto escrito e ilustrado por mim
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Brincadeira "angelical"...
"O cálice do Padre Amaro"
Técnica Mista sobre tela (todo pintado a acrílico à excepção do cálice feito em pasta de modelar que foi colado)
70 cm x 90 cm
Sara - 2008
OBS.: Quadro seleccionado para integrar o concurso / exposição "Mostra de Arte nos Anjos 2008". Encontra-se exposto na Kabuki Galery, em Lisboa, desde o dia 26 de Setembro até ao dia 22 de Novembro.
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
A flor da idade
Era um quintal largo e comprido, verdejante e colorido. Primorosamente cuidado.
Frequentemente regado e acarinhado.
No canto inferior esquerdo estava um frondoso arbusto, verde como a relva. Mesmo ao lado, plantaram-lhe algumas rosas e cravos.
Quando chegou a Primavera de Maio, a rosa, que havia ficado desiludida com o cravo voltou-se para o sol que batia vindo de trás do arbusto. E foi assim que reparou nele e que ele com ela meteu conversa.
Os dias foram passando.
O jardim foi ficando mais florido e o calor acariciando as horas de longos tête-à-tête entre ambos.
O arbusto contou-lhe que tinha casado às cegas com uma silva e que farto de se picar ficou feliz quando a viu ser arrancada para fora daquele grande quintal.
A rosa, romântica, confessou-lhe ainda amar o cravo mas que por este ser tão leviano se viu obrigada, a bem de manter a sua sanidade mental, a terminar a relação. Para ela nada a entristecia mais do que tal desfecho para um lindo sonho de amor eterno.
O cravo ia namoriscando com uma dália e com uma gerbera mas não tirava os olhos dela. De qualquer modo, não se aproximava, lançava-lhe apenas o seu perfume e o seu ciúme.
O arbusto percorria com palavras as peripécias que passara com aquela a quem chamava “erva daninha”.
Os diálogos foram girando em torno da política ambiental, dos últimos químicos do mercado, das fotosínteses e das podas. Tinham-se encantado um pelo outro. A rosa e o arbusto.
Este achava-a demasiado jovem mas muito culta e esplendorosa, de uma beleza aveludada e ímpar. Não resistiu à sua jovialidade, ao seu aroma fresco e sedutor.
Por sua vez, à rosa o arbusto pareceu-lhe mais novo do que na realidade era. É certo que já tinha passado pela puberdade há muito, que era um Senhor, mas evidenciava uma forma física excelente e tinha a vantagem de já não ser demasiado infantil. O arbusto continuava apetecível mas já era maduro. Charmoso, embora simples. Tinha, no entanto, tudo o que ela procurava: sabedoria e tranquilidade.
Ela tinha o fogo que ele nunca experimentara, o ardor de quem sabe viver uma paixão. Com a silva, o arbusto só conhecera hostilidade e frigidez.
Pois, é verdade que a rosa é estonteantemente bela e tem pétalas suaves mas é bom não esquecer que também tem espinhos. Espinhos cravados pelo cravo.
Com calma e sem pressa, deixaram o tempo correr, entre água, oxigénio e ternuras. Sorvendo da terra a energia que lhes dava o dom de tornarem o seu amor crescente num passe de magia.
O arbusto, que foi o primeiro a deixar-se enfeitiçar por tal enamoramento, travava uma árdua batalha consigo próprio. Não lhe parecia que apaixonar-se por tão tenra rosa fosse prova de grande maturidade. De tempos a tempos, tinha crises de lucidez forçada que lhe chamavam à atenção para a diferença de idades entre os dois. Sentia-se frágil, completamente à mercê da rosa, com receio que ela não quisesse passar o resto dos seus dias com ele, que já estava a chegar a meio da vida. E uma rosa tão vistosa, que de certo atiçaria o desejo de tantos cravos e outros botões de flor na força da juventude...
Não, o arbusto não duvidava do que sentia por ela, nem da sua virilidade, mas sim do tempo que ela seria capaz de se manter junto a ele. Sofria horrores pensando que poderia desperdiçar os bons anos que lhe restavam com uma rosa que o deixasse só quando constatasse que ele entraria na decadência, altura em que provavelmente mais precisaria de companhia.
A rosa, que vivia aquele romance sem se aperceber do compromisso que se instalava e que, inconscientemente, ainda acreditava na possibilidade de se reconciliar com o cravo, passeava a leste por um amor que se apresentava inevitável. Despreocupada e leve... Sempre independente, rodando para o lado de onde o sol vinha mais luminoso. Talvez isso ainda prendesse mais o arbusto, que apesar de maduro se sentia novamente adolescente. Aliás, o arbusto era bem mais vulnerável já que nunca se tinha deliciado com um amor intenso... Enquanto a rosa amara desvairadamente o cravo, entregando-lhe com todo o fervor o coração e o caule. O arbusto só sabia o que era tal fogoso amor desde que conhecera a rosa. A silva era muito irritadiça, muito pouco dócil e muito menos imaginativa. Nem quando ambos eram da idade da rosa e se diziam apaixonados ele tinha sentido as suas folhas tremerem como agora tremiam cada vez que tocava na rosa.
A bonita rosa acordou certa manhã de Verão muito encalorada... Descobriu que já não sabia viver sem o arbusto, que já não conseguia libertar-se do orvalho das noites mais frescas sem ouvir as gargalhadas dele, sem sentir os seus troncos acariciarem-lhe impetuosamente as suas pétalas e o seu caule, arrancando-lhe os espinhos. E sem espinhos, ela deixou de ter defesas.
Apaixonou-se. Devagarinho, de mansinho, com muita música, muitas trocas de palavras, muitas simbioses de seiva... Mas apaixonou-se.
Deixou até de se interessar pelos olhares vigilantes que o cravo lhe continuava a lançar.
Deu-se conta, então, da diferença de idades entre ela e o arbusto. A primeira reacção foi de susto, nem sabe explicar porquê. A única explicação plausível seria a de se sentir insegura, de pensar que o arbusto (mais vivido e rodado) se poderia estar apenas a aproveitar da sua frescura... como quem diz, que talvez ele quisesse apenas "passar um bom bocado", sorver-lhe a beleza... Mas essa era uma explicação que não fazia qualquer sentido. Sabia-o. Ele estava realmente encantado com tamanha formosura mas igualmente preso à sua beldade interior, enfeitiçado pela sua alma e pelas cores da sua aura...
Como a rosa era ponderada e cautelosa mas depois de decidir algo nada a demovia, lançou-se perfumada e de cabeça naquele amor. Só perto dele se sentia em paz, protegida, compreendida.
Queria ficar com o arbusto para sempre. Amá-lo na relva do jardim, contar-lhe segredos, partilhar poemas... Queria jogar à fantasia, conversar sobre imaginação, fundir-se nos seus sonhos. E o arbusto, perante tantas certezas da rosa e tantas vontades dele, aventurou-se...
O amor não tem idade e o das flores muito menos.
E ainda bem que amar no jardim é livre, que a rosa e o arbusto vivem num mundo de liberdade, que se amam e escolheram amar, que se encontraram na flor da idade...
Hoje, de mãos dadas, apanham o sol de Inverno virados para o mesmo lado... de costas voltadas para o cravo e para as outras flores, para os ponteiros do relógio; muito longe da silva, apenas desfrutando de um verdadeiro amor...
Texto escrito e ilustrado por mim
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Cinzento, uma vida vulgar
Ela sentou-se na mesa do café do costume.
Abriu a mala e retirou o bloco, a caneta e o maço de cigarros. Poucos segundos depois tinha a bica e a empada de galinha à sua frente. O empregado já nem precisava de perguntar o que desejava tomar, conhecia-a mecanicamente, como se também ela fizesse parte da mobília.
O tempo, esse, era confuso, parecia arrastar-se deliciosamente nostálgico mas na realidade passava a correr. Passava tão depressa que, por vezes, não lhe dava tempo de ter todos os pensamentos que lhe apetecia ter em frente a uma chávena, a um pires e a um cinzeiro.
Quando estava deprimida escrevia a todo o vapor. Quando estava feliz deixava o tempo passar enquanto procurava inspiração, começando a rabiscar algo que de seguida já parecia demasiado pequeno para a sua alma. Rabiscava, então, mais qualquer coisa que aparentava ser mais promissora, para minutos seguintes ter o mesmo fim... Lixo! E sorria. Sorria de sorriso em sorriso, acompanhando pensamentos aprazíveis.
Hoje, estava mais cinzenta. Apetecia-lhe. É quando está cinzenta que pensa com mais clareza, que reflecte na vida, nos pequenos pormenores, que saboreia o café dando real importância ao seu sabor. É quando está cinzenta que se lembra de apreciar a cor do céu e que tem vontade de ter saudades das coisas boas que viveu e que tem vontade de desejar outras iguais ou melhores.
Às vezes, sabe bem estar cinzenta. Sem masoquismos, claro. Mas tem um gosto especial, como as músicas da Gal Costa ouvidas em Domingos da década de 80. Como ler a biografia de um rei e sentir-se paixão pela História. Como ouvir que Napoleão nasceu com dentes e tinha um fetiche sexual um pouco invulgar... ouvir que Napoleão quando regressava das suas muitas viagens pedia à sua amada Josefina para não se lavar...Quando ouvia episódios destes sobre pessoas que há muito morreram mas que traçaram os destinos do mundo como agora o conhecemos, fazia uma cara de espanto, de “desagrado” e de seguida sorria... Porque, no fundo, há coisas mirabolantes que fazem soltar um sorriso inexplicável, cujo verdadeiro sentimento não se decifra. E o estar cinzenta é ter cara de estupefacta, de reprovação e sorrir... por dentro sorrir. O sorriso cinzento tem algo de requintado... Afinal, cinzento não é preto... é dúbio.
Acendeu um cigarro, lançou umas bolas de fumo para o tecto e deu um gole no café. Sabia a caramelo, era daquela qualidade com bom sabor e tinha sido bem tirado, não estava queimado.
Deve ter tido sorte em ser o primeiro café a ser servido depois de lavado o manípulo da máquina.
Lembrou-se da conversa com a Teresinha, sua amiga desde o berço.
A Teresinha aos 15 nos dizia que queria ter uma filha, casar, ter dinheiro e que ia viajar até ao Brasil. Que seria feliz.
Ela havia dito à Teresinha que queria ter dois filhos, ser actriz famosa, casar, ter uma casa com piscina e viajar até à Austrália.
Na semana passada encontrou a Teresinha, que já não via há 10 anos. A Teresinha tinha dois filhos rapazes, um marido “mais ou menos”, trabalhava numa pastelaria e nunca tinha saído de Portugal. Despediu-se dela com pressa para ir fazer massa com chouriço, que o marido gostava do “comer a horas”. Sabia que a Teresinha queria ficar na conversa com ela mais algum tempo...
Tinham tanto para dizer, para contar. A Teresinha fora durante anos a sua melhor amiga e mesmo que tivesse passado outros tantos afastada e que até já pudessem não ter muito em comum, permanecia aquele «vontade» aquele sentimento de paz que é a verdadeira amizade.
Como quem diz “já não temos muito assunto depois de uma ou duas longas conversas mas continuo a gostar de ti e podes contar sempre comigo”. E foi uma desilusão ver a Teresinha tão aflita, a despedir-se à pressa, com mil desculpas e um sorriso na cara para disfarçar o quão irritante era ter que ir cozinhar massa com chouriço para o seu marido taxista que de vez em quando pulava a cerca mas que no fim ficava sempre com ela e com os miúdos.
E ela? Ela tinha apenas um filho. Casara e divorciara-se. Não tinha uma casa com piscina, mas um bom apartamento nos subúrbios. Não era actriz famosa mas era arquitecta. Não fora à Austrália mas já conhecera bastantes países...
Onde está a vida dela e a da Teresinha? A que desejaram? Não está...
Então, pensava se valia a pena desejar, porque nem sempre o que desejamos acontece. Mas quando desejamos, nesse exacto segundo, sentimos a felicidade que imaginamos sentir se fosse verdade e não sonho.
A vida tinha sido, em certa parte, bem mais traiçoeira para a Teresinha do que para ela, mas reparou que a Teresinha ainda assim parecia mais conformada, mais feliz. Mesmo com o marido que gosta de massa com chouriço... com um emprego numa pastelaria.
A Teresinha parecia ter ficado com a cabeça vazia de tudo, de sonhos e de realidade. Parecia mover-se roboticamente . Mas movia-se... Não perdia tempo a ficar cinzenta, a fazer bolas de fumo e a pensar. Só lhe interessava limpar a casa e fazer massa com chouriço a horas!
Apagou o cigarro no cinzeiro que desta vez o empregado não se esqueceu de colocar na mesa. A Teresinha pareceu-lhe talvez mais feliz do que ela mas provocou-lhe pena... Pena porque a Teresinha se perdeu no tempo e na vida, foi fumada como um cigarro. Da Teresinha não resta nada, só um corpo. A Teresinha perdeu até a capacidade de ver o quanto se devia sentir infeliz...
Sentiu saudades da Teresinha que nem sabia estrelar um ovo mas que lia romances, que tinha sentido de humor, que se apaixonava facilmente, que tinha a mania que era muito independente e crescida. A Teresinha que aos 15 anos já comprava livros de Freud na Feira do Livro. Pois, dessa Teresinha que hoje se fosse analfabeta quase nem daria conta.
Depois, pensou na Carlota. A Carlota economista, casada com o advogado, mãe de uma Madalena, que todos os anos faz férias no estrangeiro e que até já foi à Austrália, mas que também não tem assunto a não ser a última bolsa da Vitton , as aulas de piano da criança e o desapego ao marido que atura para não baixar o nível de vida. A Carlota que não é feliz mas que finge ser e que se gaba constantemente da sua esperteza, não percebendo o quanto lhe fica mal e o quanto desperdiça a vida ao viver com um homem que já não ama, ao não ler um livro...
Onde está a sua vida? Onde está? Porque não tem casa com piscina? Porque não tem marido? A casa com piscina está longe do seu orçamento.
O marido teve mas não como queria. Para não sentir a solidão de quem está acompanhada - como a Carlota -, para não ter que deixar a conversa a meio - como a Teresinha - preferiu não ter. Até porque ainda não se sente assim tão vazia que tenha deixado de reconhecer a infelicidade ou tão fútil que prefira as malas Vitton a estar disponível para amar e ser amada.
Bebeu o resto do café e pensou como seria a sua velhice...
Quer uma casa com alpendre, um jardim verde à volta... paredes brancas, rosas e os netinhos por perto. Mas ao seu lado, sentado no mesmo degrau da soleira da porta quer um amor, um grande e terno amor, para quem sinta vontade de fazer assados e tartes de fruta. A quem sinta necessidade de tirar os óculos devagarinho e dar um beijo na testa quando está adormecido na poltrona... Um amor com uma voz bonita que lhe leia trechos do livro que anda a ler e que admire os projectos que vai desenhar sempre, mesmo que sejam para guardar num armário com vidraças e chave e para as traças comerem.
Sorriu. Estremeceu ao pensar que a velhice poderá ser diferente...
Tinha que ir buscar o filho ao judo, já não tinha tempo para pensar na velhice de Teresinha e de Carlota. Mas na velhice delas também não queria pensar... Levantou-se e disse:
- Sr. João, quanto é que devo? Quero pagar!
Texto escrito e ilustrado por mim
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Conversa de amor
Ao entardecer encontraram-se no céu pintado de laranja e salpicado de azul prateado. Deitaram-se de barriga para baixo, com os pés dobrados para cima em direcção a outra galáxia. Ele pôs-lhe o braço por cima dos ombros e olhou enternecido o seu amor com rosto de sonho.
- Já pensaste porque nos amamos desde que nos conhecemos, desde que o mundo é mundo? – Perguntou ele, que hoje se sentia particularmente apaixonado.
- Não sei... amamo-nos... – Respondeu ela, que hoje estava em quarto crescente, com falta de inspiração.
- De onde virá tamanho amor? Amo-te cada vez mais...
- É por isso que tens essa necessidade de te sobrepor a mim todas as manhãs... – Decididamente, não estava nas suas melhores luas.
- Não digas isso, só quero cobrir-te... aconchegar-te quando estás tão fria... E tu gostas de me tapar todos as noites...
- Isso é porque tu não sabes quando descansar, tens o péssimo hábito de te excederes... de te armares em herói, tipicamente masculino... e isso não faz bem à saúde. Se não tomas conta de ti, alguém tem que tomar!
- Ahhhh ... é por amor... Vês, como me amas muito?! – Disse ele com um sorriso travesso e deu-lhe um beijo suave na bochecha rechonchuda.
- Nunca pensaste porque somos tão felizes? – Insistiu ele, enquanto ela ia aumentando de felicidade.
Sonhadora como só ela, e também cada vez mais apaixonada por ele, experimentou então satisfazer-lhe o desejo. Pensou, pensou e respondeu, em tom de quem se preparava para fazer um monólogo...
- Tu és Sol. Eu sou Lua.
Tu és dia. Eu sou noite.
Tu és de Marte. Eu sou de Vénus.
Tu és dourado e quente. Eu sou prateada e fria.
Tu tens raios fortes e viris. Eu tenho brilhos suaves e doces.
Tu esperas que a Terra te rodeie. Eu aproximo-me mais dela.
Tu adoras multidões. Eu vibro só a dois.
Tu gostas de aquecer ânimos. Eu costumo apaziguá-los.
Tu és bom conversador. Eu sou boa ouvinte e também tenho muitas histórias para contar.
Tu és de paixões, iluminas mais uns do que outros. Eu sou solidária, abraço todos.
Tu emanas energia. Eu emano liberdade.
Tu cresces no Verão. Eu cresço no Inverno.
Tu és Vida. Eu sou Sonho... Sou sonho... O sonho comanda a vida, já dizia o poeta... – As últimas palavras foram proferidas com um sorriso rasgado. E a Lua continuou a crescer, a crescer...
- Tu és a minha Lua! Eu sou o teu Sol!
É por isso que te amo... Quando pensas percebes logo aquilo que eu não consigo perceber, apenas sentir. E eu nunca seria capaz de me expressar tão bem! Como gosto de te ouvir, minha Lua... – O Sol ainda teve tempo para beijar a Lua, que à medida que os ponteiros do relógio de Deus iam rodando se agigantava. O Sol feliz, começava a ficar sonolento, sonolento... Mas ainda a ouvia enternecido.
- Dizes tu! Podes não ter jeito para as palavras mas tens uma habilidade especial com os gestos! Hummm ... às vezes, mesmo sendo tão escaldante provocas-me arrepios! – Dito isto, a Lua, começou a levitar, devagarinho. Foi subindo, subindo.. E levava um sorriso matreiro, a pensar que já faltava menos para a lua nova...
- Tu és de luas, é por isso que te amo! Contigo a vida é pouco monótona, cada dia é uma surpresa! Amanhã no mesmo sítio, à mesma hora, Lua! Fico à esperaaaaa !!!! – Gritou o sol, pondo-se, muito pequenino, em pé, acenando apaixonadamente à Lua. À Lua que já tinha subido bem alto, até ao telhado do céu, pronta a iluminar outros amores mais terrenos.
Texto escrito e ilustrado por mim
domingo, 21 de setembro de 2008
A velocidade do desejo
Ela amava-o definitivamente.
Já não podia escondê-lo mais de si própria. E era um amor imenso, capaz de cobrir a cidade, a floresta, o país, o mundo. Um amor tão grande que às vezes quase acreditava gostar mais dele do que... dela.
Não, não tinha nada de insano, pensava. Era puro, como os flocos de neve. Verdadeiro como o acto de nascer e o de morrer.
Amá-lo era a melhor sensação que já tinha sentido. Com ele voaria para qualquer céu, voaria a pique, faria acrobacias desnecessárias só pelo ínfimo prazer de o acompanhar, de o amar.
Um amor invencível percorria-lhe as veias, os gânglios.
Ela era feita de sangue, de água e do amor que ele lhe inspirava. Um amor desesperadamente volumoso que não conseguia mastigar de boca fechada...
Com ele conheceu o desejo, o sonho, a vontade de sorver o presente e de traçar o futuro.
Parecia que nada nem ninguém eram tão grandes, tão importantes... só ele.
E ele sentia-se assim. Amava-a com a mesma intensidade, a mesma pressa de quem quer viver tudo de uma vez.
Já não importava o que pudessem pensar, os conselhos que pudessem dar... Só amá-lo e sentir-se amada bastava.
De mota percorreram o Centro, o Sul, à direita, à esquerda, em rectas, em curvas... Em estradas nacionais, vias rápidas, auto-estradas... Passaram a fronteira. Regressaram.
Voavam em duas rodas por paisagens de mar, por lezírias, por terras de pó, por desfiladeiros, matas e ruas da cidade.
Sempre juntos, sempre abraçados... Enquanto as rodas giravam, giravam... até a adrenalina os enlouquecer . E as rodas giravam, giravam... até o sono chegar. E sempre girando, curvando com a ponta do nariz a escassos centímetros do chão sentiam-se mais perto do céu... e o amor crescia, crescia. Galopava, sempre apressado, livre de consciência, de pareceres, de regras, de sensatez.
O amor era tão grande que eles se julgavam os donos dele, como se o mundo lhes coubesse na palma da mão... Escutavam-se entre roncos de escape, rateres e música...
O amor deles era feito de música. Sempre fôra. De música do tempo deles e do tempo de outros.
E o amor continuava, em primeira, segunda, terceira, quarta... e quinta. Sempre com com a mão no acelerador. O pé raramente pousava no travão. Quando a curva se avistava apertada demais, quando algum obstáculo se lhes deparava, eles preferiam ir travando com a caixa das mudanças, tinha mais classe, era mais difícil mas mais suave... Mal a curva se desfazia, o obstáculo desaparecia, a segunda, a terceira, a quarta e a quinta eram metidas e o pulso forçava o acelerador. E o amor corria, fugia... disparava, mesmo sem turbo. Com um simples toque de embraiagem e alguma magia erguia-se no ar como um cavalo...
Era amor. Amor.
- Vamos ficar juntos para sempre... Para sempre... – Dizia ele.
- Até sermos bem velhinhos... – Completava ela.
- E quando o primeiro morrer... – Continuava ele.
- Não digas isso! Não quero pensar... – Interrompia ela.
- Quando o primeiro morrer... que devo ser eu... – Insistia ele.
- Porque dizes isso? Não, não serás tu... – Contrariava ela.
- Porque tu és tão forte... Quase nem a dor te perturba... Nunca conheci ninguém assim... – Acrescentava ele.
- Posso ser forte mas não sou imortal... – Prevalecia ela.
- Quando o primeiro morrer... Podíamos fazer um pacto, uma jura... – Tornava ele.
- Vais dizer que... – Ela sorriu.
- Vou! O primeiro podia vir visitar o outro... Matar saudades... E terminar com o grande mistério, contar ao outro o que esperar... – Ele sorriu.
Ainda com o sorriso preso nos lábios ela olhou-o com todo o amor de dimensão impossível que sentia por ele. Pensava como era bom amar um homem que a amava ao ponto de uma vida com ela não lhe chegar... De como era bom amar um homem destemido...
- Não te vais assustar por me ver, pois não? – Perguntou ele.
- Nunca... Vou adorar! Prometes que voltas mesmo para me visitar? –Questionou ela.
- Nunca me esquecerei, aconteça o que acontecer...Prometemos. – E ele fez-lhe uma festa na perna, segurando o guiador com a outra mão. Como de costume ela respondeu-lhe apertando-o com as pernas.
- Mas, antes, promete-me que vamos morrer bem velhinhos... bem velhinhos... – Brincou ela.
- Nunca antes dos noventa, está bem?! – Concordou ele.
E o amor seguiu viagem, a velocidade cruzeiro, para desfrutar da paisagem. De vez em quando o amor abrandava, não de intensidade mas para se deleitar com os seus pequenos grandes prazeres, palavras, pensamentos, gestos, sonhos... promessas.
A estrada não tinha sinalização, cruzamentos ou sinais STOP... Era facilmente recta com algumas curvas agradáveis de contornar...
O sol ia-se pondo, descia até quase pousar sobre os capacetes... Sobre o amor.
Os raios das rodas brilhavam, irradiavam nos seus contínuos movimentos circulares...
Os quilómetros iam passando, passando e o amor de tão faminto comia-os com uma vontade insaciável, crendo ter estômago para muitos mais.
O amor sonhando acordado não reparava que os pneus se iam queimando no alcatrão, que se iam desgastando irremediavelmente.
O amor era jovem, entusiasta, inconsciente, apenas queria viajar, conhecer sempre mais longe...
Moldável. Era um amor com coração de manteiga, com hormonas descontroladas. Curioso. Um amor cheio de curiosidade. Sôfrego, fogoso e cego. Irresistivelmente cego e festivo. Tinha muito fogo de artifício... Mas era autêntico. Prevaleceu por muitos quilómetros, muitas estradas, muitos desejos, muitos sonhos, muitos planos... Prevaleceu mesmo depois dos pneus se gastarem, obrigando as rodas a girarem em sofrimento... Quando muito mais à frente o combustível terminou, a mota foi empurrada a quatro braços... O amor foi levado ao colo, às cavalitas...
A música tocava... Este era um amor feito de música do tempo deles e do tempo de outros.
O amor foi carregado, arrastado e quando as forças escassearam...
- Nunca pensei... Juro. – Confessou ele, triste.
- Acreditei que fosse para sempre... Sinto-me enganada... – Segredou ela, mais calma.
- Também eu... Nunca amei assim ninguém... E não vou amar. Não quero amar assim mais ninguém! – Assegurou ele.
Quando se voltaram para procurar o amor no banco em que o deixaram a repousar ele já lá não estava. Tinha ido embora pelo seu próprio pé, cansado de ser levado ao colo. Julgou-se um fardo.
A mota parou. Não arrancava mais.
- E agora? – Indagou ele.
- Não sei... Vou tentar apanhar boleia. Preciso de voltar para casa... Parada aqui não posso ficar... – Decidiu-se ela.
- Talvez seja o melhor... De qualquer forma, vou tentar consertá-la... Talvez um dia ela volte a andar... – Sussurrou ele.
Foi a última vez que ela o viu.
Ela não podia esperar. Não queria esperar. E também não ia procurar o amor que se tinha lançado ao caminho sozinho, sem se despedir deles.
Se a mota um dia voltasse a rodar, a lamber a estrada, a contar quilómetros e se o amor voltasse... tudo bem. Mas para já, parada não ficaria. Iria tentar apanhar boleia. Era mais inteligente. E a inteligência, pelo menos, ainda não tinha partido sem se despedir. Permanecia fiel, a seu lado.
O amor... para onde teria ido aquele inconsciente?
Em frente havia um cruzamento, o primeiro cruzamento... As tabuletas não tinham qualquer indicação inscrita, estavam em branco... Pode ter-se perdido...E mesmo que quisesse regressar não saberia como.
Soube que a mota tinha conserto mas ela agora anda de carro... As rodas giraram noutro tempo.
No tempo deles.
O amor não se perdeu. Escondeu-se... Fê-lo de propósito. Lá devia ter as suas razões...
Será que se ele um dia morrer primeiro volta para a visitar? – Foi o último pensamento.
Escrito e ilustrado por mim
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